Em 1955, após a primeira digressão a Portugal de uma equipa de Clube de Moçambique, de que eu era atleta, aparte da descoberta de um País encantador ao qual todos estávamos ligados por raízes profundas e históricas, verificou-se um contacto desportivo intenso, desde o Norte ao Centro e Lisboa, em que a equipa do SNECI defrontou vários adversários com estruturas de jogo diversificadas.
O impacto que me causou foi tão forte e marcante que só um par de anos mais tarde, senti que tinha digerido, em termos desportivos, os aspectos concretos e subjectivos daquela digressão e do primeiro Campeonato do Mundo a que assisti, na Itália, em que nos classificámos em 3º lugar.
As jornadas do SNECI pela então Metrópole, tiveram dois resultados diferentes: – altamente vitoriosa fora de Lisboa, 11 jogos, 10 vitórias e 1 empate, 84 golos marcados e 22 sofridos; – em Lisboa, registámos 3 derrotas, 1 vitória, 22 golos marcados e 24 sofridos.
Tudo normal! Uma digressão brilhante e surpreendente… os miúdos laurentinos extasiaram todos quantos tiveram ocasião de os apreciar. Todavia, no canto da memória, ficaram questões por resolver que haviam de não só de me perturbar como me abrigaram a reflectir e eventualmente transformar o jogador que era naquele que acabei por ser e moldar, com o andar dos tempos, o treinador que fui e ainda sou: inquisitivo, estudioso e audacioso.
Tal como em 1949, tinha eu 14 anos, quando a célebre Selecção Nacional, Campeã do Mundo, lançou as sementes das coisas concretas do hóquei em patins, também agora, depois da digressão do SNECI, algo de novo ficara gravado no meu cérebro, a realidade das coisas abstractas, as partes menos visíveis da modalidade.
Justifica-se abrir uma ligação para o Álbum de Jornais, e algumas referências feitas a meu respeito que visam exclusivamente enquadrar o jogador que fui, mais do que propriamente auto promover-me. Longe de mim a necessidade de adjectivos saudosistas. Mas duma análise desses recortes, pode-se concluir que a nível de execução técnica individual, os limites por mim atingidos foram situados pelos críticos ou por outras pessoas, nos pontos mais elevados do seu rendimento.
Na verdade, até 1955, numa comparação com os adversários, sabia que já tinha dominado todas as soluções de carácter técnico-táctico individual, fossem elas de patinagem, do domínio da bola, dos passes, das seticadas e das simulações (drible). E esta tipologia aplicava-se tanto a mim como aos meus colegas mais famosos e dedicados, pois treinávamos bastante, dado que o quadro competitivo local assim o exigia: dois jogos e cerca de três sessões de treino por semana.
Mas quais seriam então as razões das minhas preocupações e dúvidas? Porque raio me agitava às voltas com problemas de carácter global? Talvez o espírito inquisitivo que, na verdade, é um traço que me aflige. Olhando e remoendo os resultados da digressão do SNECI, um facto saltara à evidência:
– Depois de defrontarmos equipas destituídas da componente colectiva, que vencemos convincentemente, não conseguimos ultrapassar outras com certo traquejo e organização, mesmo que esta fosse produto da maturidade ou mero entrosamento entre os seus componentes. Constatara, na altura, que um mínimo de ordem colectiva, punha em causa o alto poder do hóquei de improvisação técnica individual.
Em finais de 1955 fui para a Beira onde joguei durante a época de 1955/56, durante a qual recebemos a visita do Clube Desportivo de Paço de Arcos, Campeão Nacional que em Lourenço Marques tinha vencido todos os encontros em que participara, incluindo a Selecção. Não quis crer! Os “velhotes”, Jesus Correia e Correia dos Santos, tinham feito gato-sapato dos meus colegas lá de baixo, segundo ouvi da boca deles, mais tarde.
Na Beira, integrado na Selecção desta cidade, como já tinha treinado e jogado com estas figuras de proa da modalidade, fiz uma descrição do seu modo de actuar, resultando uma proposta de solução táctica simples que foi eventualmente aplicada com determinação contra os Campeões Nacionais. O seu tipo de jogo foi caracterizado por mim como:
– Vila Verde: – Guarda-redes muito bom; – Campos: Defesa estático, muito agressivo; – Virgílio: Médio, agressivo mas de curta penetração; – Jesus Correia: movimentação livre, poderoso e muito veloz; – Correia dos Santos: malabarista, jogador de área. Perigo nº1!
Solução: – Marcação cerrada, dentro da área e arredores a Correia dos Santos, pretendendo evitar que recebesse bolas; – barreira passiva a Jesus Correia, feita por mim, induzindo-o a patinar sobre o seu lado esquerdo, donde raramente seticava de longe; – interceptar passes e contra-atacar rapidamente; – Nos ataques, já uma mera intuição levava-me a aproveitar uma cortina com o meu médio para, em sprint, patinar em círculo em redor dos defesas e passar ao colega que apareceria no lado oposto.
Resultado: – Vencemos por 5 – 3, tendo o Paço de Arcos averbado a sua primeira derrota em toda a digressão e, se não estou em erro, do Campeonato Nacional.
Este acontecimento constituiu uma lição relevante porque foi a primeira vez, pelo menos em que tenha estado presente, que uma decisão consciente, de carácter táctico, foi aplicada no terreno. Foi um marco pois jamais jogara com qualquer planeamento prévio. Além disso, fiquei convicto que o movimento circular era o futuro.
Na época 1956/57, aos 22 anos de idade, já tinha regressado a Lourenço Marques, filiando-me no Clube Ferroviário. Um ou dois meses depois era convidado para ser o responsável pela preparação das equipas seniores do Clube como jogador/treinador.
Ao aceitar o cargo, apesar da complexidade inerente ao facto de não ser fácil actuar nessa situação, acreditei que ultrapassaria os problemas, especialmente se objectivasse tornar-me num treinador diferente dos demais. À partida seria simples, estudar a prática do hóquei em patins, fazer uma análise comparativa com outros desportos, detectar os problemas e testar soluções, treinando-as e aplicando-as nos jogos.
Além disso, havia que estabelecer umas poucas de regras: – a assiduidade e empenhamento nos treinos determinariam as convocações para os jogos e nestes, mesmo que provocados pelo adversário ou público, não reagiríamos, sendo o capitão o único autorizado a falar com o árbitro. Numa nota curiosa, alertei-os que, dentro do campo, o treinador desapareceria para dar lugar ao jogador, o qual não daria instruções no decorrer da partida e que só faria recomendações nos intervalos, no balneário. Assim foi durante a minha passagem pelo clube, a pontos de nos primeiros dois anos os espectadores pensarem que o treinador era o nosso Seccionista e grande amigo, Stanley Rygor, outra personagem carismática que deu uma vida inteira ao serviço do hóquei em patins do Ferroviário, bem como às revistas de variedades levadas a cabo no Teatro Varietá, em que actuava como coreógrafo dados os seus dotes de exímio dançarino.
Desenhei rinques à escala:
1 – Posicionei os atletas no campo; 2 – Determinei área de cobertura (alcance) na posição parada: (Raio=1,50 m); 3 – Determinei áreas de cobertura com o atleta em extensão de braço e setique, joelho flectido, sem sair do lugar: (Raio=3,00m).
Com base na minha experiência de jogador e num raciocínio assente na lógica, ao analisar o tabuleiro agora coberto de manchas circulares que representavam as áreas de intervenção fácil dos defensores, resultava uma 1ª questão:
– Por onde vão, ou melhor, por onde deverão ir os atacantes que pretendem ultrapassar o quadrado adversário e aparecer defronte da baliza?
Antes de responder a esta pergunta, a realidade indicava-me os seguintes factos:
– Que uma equipa jamais atacara outra com uma solução global consciente.
– Que o hóquei em patins até então só tinha sido jogado conscientemente quando se verificavam situações de contra-ataque.
Exemplos: – SNECI, Sport Lisboa e Benfica, Hockey Clube de Sintra e C.D. Paço de Arcos.
Resumindo, interiorizei que durante os contra-ataques, verificava-se um movimento de vai e vem, na longitudinal do rinque, tipo pistões, rápido quando os defensores não se encontravam nas suas posições habituais, obrigando a travagens bruscas e inversões de sentido e deveras lento e hesitante quando a metade do rinque já estava ocupada pelos adversários.
Todavia, todos sabemos que a actuação dentro do campo alterna entre ataques e contra-ataques, variações estas que ocorrem em número sensivelmente igual. Sempre soubemos, mais ou menos, como contra-atacar e nunca tivemos a mínima ideia como actuar durante os ataques.
Hoje em dia, esta situação ainda prevalece, estando muito longe de ser resolvida satisfatoriamente. O Hóquei em Patins, tal como o Futebol, (realço que falo dos seus universos, onde os jogadores mudam de direcção abruptamente, ao sabor do que lhes vai na cabeça), dada a falta de sincronização entre os seus elementos actuantes, só melhorará qualitativamente quando criarmos soluções que resolvam, de um modo encadeado, todas as soluções de ataque e contra-ataque que podermos antecipar.
Continuando a analisar o tabuleiro, ao definir as linhas básicas dum sistema global, ficaram configurados os percursos circulares, elípticos e em arco, maiores ou menores, que seriam os trilhos mais percorridos pelos atletas em competição. A conclusão imediata era que a circulação teria, forçosamente, de abarcar o treino persistente sobre essas curvas, o que me levou a definir as Linhas do Sistema.
Outra consequência era que o movimento circular dos atletas, (repare-se que elimina muitas travagens ao terem de recuar, pois passariam a fazê-lo “en passant”), não deveria verificar-se num só sentido e que um deles deveria contrariá-lo. Deste modo criaram-se as chamadas cortinas com as suas respectivas potencialidades, bem como, em caso de perda de bola, permitir ao jogador que patina em sentido oposto, prosseguir para a sua área a fim de parar qualquer incursão do adversário.
Nota – A geometria regular das linhas do quadro 5, de aplicação nos treinos e jogos dos escalões inferiores, com soluções tácticas simples, adequadas ás idades dos praticantes e introduzidas progressivamente, sofre uma transformação nos escalões etários adultos, do tipo harmónio, adaptando-se à reacção do adversário, comprimindo ou alargando, sem perder de vista a forma original de modo a acomodar as soluções de táctica colectiva complexas, (espaciais e temporais) que o CARROSSEL oferece.
Contudo, a implicação de maior consequência do “Carrossel”, foi a eliminação de das posições fixas. No mínimo, neste sistema, 3 dos elementos da equipa tinham de ser altamente versáteis, isto é, tão eficazes a defender como a atacar. Dos hábitos anteriores, um jogador mantinha-se sempre atrás. Ora o “Carrossel”, em toda a sua plenitude, requer o enquadramento desse elemento o que está a ser facilitado, hoje em dia, não por evolução, mas sim por decreto que obriga o mesmo a ir postar-se para lá da célebre linha de anti-jogo.
Estamos agora em 1957, um ano após a minha saída da Beira e um ano de treinos quase diários no Clube Ferroviário, onde, como jogador/treinador, acabaria por introduzir e impor este sistema. A metodologia procurava abarcar todos os aspectos da preparação física sobre rodas, das técnicas e tácticas, dando importância prioritária à circulação sincronizada das diversas acções dos jogadores. Durante a minha liderança, nos treinos, as equipas de seniores eram submetidas a uma carga elevada à volta de cadeiras. A era da peladinha acabara para estes jogadores.
O “Carrossel” organizou esta equipa, disciplinou-a e deu-lhe objectivos desportivos concretos. Posso afirmar, sem exagero, que foi a equipa que praticou melhor hóquei em Lourenço Marques. Este sistema é uma filosofia global, cujo conceito engloba todas as outras áreas de intervenção que não sejam somente o jogo em si, devendo abarcar, em especial, os escalões etários inferiores.
Como suporte de estudo e análise da prática da modalidade, criei e introduzi documentação para efeitos de registo e arquivo, que procurei actualizar.
1 – Ficha geral e individual do atleta
2 – Ficha técnica individual, (Curriculum desportivo)
3 – Ficha colectiva técnica – de treino
4 – Ficha técnica específica: – Registo de velocidades, sprints de 20m e 30m – precisão de seticada, central e laterais, esquerda e direita – velocidade da bola seticada, batida da direita e empurrada ou batida da esquerda.
5 – Ficha de assiduidade
6 – Ficha de jogos – Geral e Técnica: Estatísticas das incidências de jogo, dos tempos de posse de bola total e parcial na área adversária.
Paralelamente, tentei definir as primeiras noções teóricas relativas à prática da modalidade e já nessa altura conseguia falar aos meus atletas e colegas duma forma ordenada e clara, lógica e coerente, discorrendo sempre que possível, sobre as seguintes matérias:
1 – Técnicas de base: – Patinagem, domínio de bola, passe, seticada e dribles.
2 – Táctica Individual de base: – Na posse da bola, sem posse de bola; – quando, onde e como, patinar, dominar a bola, passar, seticar e driblar.
3 – Táctica Colectiva de base: – Situações repetitivas: – Defesa, ataque, contra-ataque, marcações de livres e penalidades, pressionar; – quando, onde e como, o (QOC).
(Todas estas noções e definições, bem ou mal, foram explicadas no meu livro “Hóquei em Patins”).
Prosseguindo, em 1957, já não era o jogador de 1955, estando totalmente casado com a nova filosofia de jogo. Nunca abdiquei do “Carrossel”, mesmo a nível das Selecções em que participava, pois encontrava nele todas as soluções que necessitava. Obviamente, nunca discuti estas questões com os meus colegas das Selecções, mas reconheço, sem qualquer vaidade, se bem que orgulhoso, que o meu movimento circular, afectou tudo e todos, vindo alterar e trazer uma nova ordem de coisas. O “Carrossel” tomou vida própria, influenciou outras equipas e todas elas começaram a girar, e girando continuaram, sem nunca saberem bem porquê!