O convite

Na primeira quinzena de Agosto de 1984, numa reunião levada a cabo pela Federação Portuguesa de Hóquei em Patins, num hotel de Lisboa, fui convidado pelo seu presidente, José Castel-Branco, para exercer o cargo de Director Técnico Nacional da modalidade. Apanhado de surpresa, tendo em conta a então recente controvérsia gerada pelas alterações às Regras de Jogo, das quais fui forte opositor, descansei o espírito, uma vez que o convite fora feito na presença de individualidades ligadas ao hóquei.

No prosseguimento de conversações sobre o assunto, ao fazer ver ao Presidente que considerava esse cargo como um exercício a tempo inteiro, tive como resposta, que a Federação não tinha dinheiro para tal. Ora, isso para mim não era surpresa, dado que, como sócio de mérito, recebia e ainda recebo, os relatórios de contas anuais da FPP. Sugeri que abordássemos a Direcção-Geral dos Desportos para tentar suprir a falta de verbas, com que o sr. Presidente concordou.

Ao aceitar este convite, fi-lo com sentido de responsabilidade e alguma apreensão. A falta de um “canudo” poderia constituir um entrave, pois nessa situação, só “eu” conhecia os conteúdos que possuía e que pudessem suportar o exercício da referida função. Contudo, como grande parte desses conteúdos, produto de estudo ao longo dos anos e gravados no meu imo, estavam apoiados no mero “feed back” animador que resultou das minhas intervenções em matérias de desporto, em geral, e da modalidade, em particular, passei uma boa semana a pôr as ideias em ordem e a elaborar um documento para apresentar ao Exmo. sr. Professor Mirandela da Costa, Director Geral, com quem reuni após marcação de entrevista e que a seguir transcrevo, na íntegra:

DIRECÇÃO TÉCNICA NACIONAL DE HÓQUEI EM PATINS

Preâmbulo:

«Reconhecendo a necessidade de apoio técnico às modalidades desportivas, criou a Secretaria de Estado de Desportos, em 1976, o lugar de director-técnico nacional, a preencher por técnicos especialistas das modalidades, com o fim de coordenar as actividades e estudar a solução dos problemas afectos ao sector federado das modalidades.

Estes elementos, nomeados pelo Secretário de Estado sob proposta da Direcção-Geral dos Desportos com prévia concordância das respectivas federações, são vinculados aos serviços centrais da Direcção-Geral de Desportos. Trabalham junto das federações, estabelecendo a ligação entre estas e a Direcção-Geral…»

No que respeita à modalidade de Hóquei em Patins, este lugar ainda não foi preenchido e acreditamos, aprioristicamente, que essa situação constitui uma lacuna séria que urge colmatar.

Assim, nasce este documento que, duma forma sucinta, procurará expressar um ponto de vista pessoal e, ao mesmo tempo, identificar não só uma série de problemas e suas soluções, como também a experiência e capacidade do signatário.

Não é fácil, obviamente, enquadrar tal ponto de vista e tal identificação com um resumo de questões tão vastas, diversificadas e complexas que são as que concorrem para o fenómeno desportivo.

Menos fácil ainda será fazê-lo, em tão poucas linhas, se tivermos de encarar esse fenómeno como uma actividade cultural e sócio-política, intrinsecamente ligada à vida do homem em sociedade, num mundo sacudido por mudanças frequentes e crises devastadoras.

Recuaremos pois, em face dessa dificuldade e reduziremos a moldura de modo a isolar a modalidade de Hóquei em Patins, limitando assim o espaço que ocupa.

Antes de prosseguir, porém, achamos conveniente registar que partimos das seguintes premissas:

1 – Que o Hóquei em Patins, a nível nacional, está profundamente enraizado entre nós, possui tradições históricas brilhantes que constituem um património valioso e invejável que seria um crime deixar degradar.

2 – Que o Hóquei em Patins, a nível internacional, tende inevitavelmente a ser considerado uma modalidade olímpica, sendo de prever a sua inclusão nos jogos olímpicos, em 1992. A Espanha, provavelmente organizadora dos mesmos, por virtude dos seus interesses particulares, pois são os maiores fabricantes de equipamentos e materiais da especialidade, não vão, com certeza, perder a oportunidade de introduzi-la, como é sua prerrogativa.

3 – Que os males que enfermam a modalidade são típicos da fase que actualmente atravessamos, fase crítica essa que não é senão o reflexo do choque da passagem do Hóquei de Improvisação ao Hóquei Táctico, isto é, da passagem do empirismo à ciência, do “segredo dos deuses” ao conhecimento geral, do carola ao verdadeiro técnico, da vedeta à equipa.

4 – Que podemos controlar esse acontecimento, compreendendo e aceitando a “luta interna” que hoje se trava, com acções conscientes e devidamente planeadas.

5 – Que uma direcção-técnica nacional poderá servir de pólo catalisador de todo um processo de revitalização, modernização e dinamização dos vários parceiros sociais desta modalidade.

Numa apreciação relâmpago, temos em linha de conta que a modalidade, independentemente da fase específica que atravessa, consequência de um progresso evolutivo próprio, sofre também pressões traumatizantes, originadas por um semi-profissionalismo natural e previsível, já instalado em quase todos os desportos e em todos os países do mundo, cujas implicações têm vindo a alterar não só os conceitos estabelecidos e a própria ética desportiva, como também as mentalidades e o comportamento das pessoas.

Temos eventualmente de aceitar esse fenómeno, de estudá-lo e de definir e introduzir regras que visem o seu controle, a fim de regularizar uma situação negativa que desmobiliza e que só favorece os interesses de alguns em prejuízo duma maioria esmagadora.

Numa óptica simplista, que procura detectar as raízes dos males que minam a modalidade, não podemos deixar de individualizar os treinadores de Hóquei em Patins, cuja competência técnica, quer do ponto de vista prático ou teórico, deixa muito a desejar, ficando muito aquém das responsabilidades inerentes a tão importante função.

Por outras palavras, ressalvando as raríssimas excepções e, por paradoxal que pareça, o Hóquei em Patins, seja a nível nacional, seja a nível mundial, nunca possuiu treinadores à altura. A grande maioria só parcialmente dominou o fenómeno desportivo.

Assim, sem pretendermos diminuir ninguém em especial, ou atribuir a responsabilidade pelo actual estado de coisas, única e exclusivamente aos Treinadores da modalidade, suspeitamos, e isso com fortes indícios, que se começarmos por regularizar essa classe que tanta influência exerce no processo desportivo, acabaremos forçosamente, por também normalizar os demais participantes.

Uma nova vaga de Treinadores, acreditados agora com a obtenção de diplomas oficiais, garantes de um mínimo de competência profissional, dada a função educativa, pedagógica e disciplinadora que virão a exercer no seio da comunidade, quer na formação da juventude desportiva, quer na condução eficaz das equipas, em treinos e jogos, tornar-se-ão, no futuro, nos “pivots” à voltas dos quais acabarão por girar os pequenos universos desportivos… e toda a nossa esperança de revitalização da modalidade.

Claro que a existência de bons treinadores, só por si, não resolvem todos os problemas. Bons treinadores produzem bons atletas e boas equipas, prontas a competir, e será a partir deste ponto que um apoio logístico integrado e eficiente terá de funcionar, se desejarmos que a verdade desportiva surja e se imponha nos recintos onde se verifica a competição.

Resumindo, como acção prioritária, apontamos para a necessidade premente de enfrentarmos a questão dos Treinadores e, paralelamente, criar os apoios periféricos à sua acção, tais como boas arbitragens, regras actualizadas, provas estimulantes, etc.

Posto isto, sugerimos, como programa genérico de trabalho de uma possível Direcção-Técnica Nacional, o estudo, introdução e coordenação das matérias cujos vectores de ataque incidirão sobre as seguintes áreas de acção:

1 – QUADROS

Formação de Treinadores

1 – Realização de cursos e reciclagens.

2 – Definição e introdução de um Regulamento Geral.

3 – Inscrições abertas, prioritariamente, aos treinadores sem curso, em actividade e a todos professores de educação física interessados.

Formação de árbitros

1 – Realização de cursos e reciclagens

2 – Definição e introdução de um Regulamento Geral

2 – GABINETE TÉCNICO

1 – Sector de estudo e investigação do fenómeno da prática do hóquei em patins, sua técnica e táctica. Publicações e divulgação.

2 – Sector de documentação, estatísticas técnicas, biblioteca e filmoteca da especialidade. Audio-visualização.

3 – Sector de equipamentos, materiais e acessórios de treino. Estudo de modelos e especificações que visem estimular e apoiar o fabrico nacional.

4 – Sector de informática. Estudo da viabilidade de introdução futura da informática, ao serviço da administração e da técnica do hóquei em patins.

3 – REGRAS DE JOGO

1 – Estudo e propostas de variações às regras de jogo, passíveis de modernização e aplicação imediata, a nível nacional.

4 – PROVAS NACIONAIS

1 – Estudo de novos modelos que permitam a dinamização progressiva dos aspectos desportivos e competitivos, ao nível de todos os escalões etários.

5 – REPRESENTAÇÕES NACIONAIS

1 – Definição e introdução de um Regulamento Geral que controle e integre a problemática das selecções nacionais.

– Normalização dos critérios de participação em provas internacionais.

– Normalização dos critérios de nomeação dos seleccionadores nacionais e respectivos grupos técnicos

– Normalização dos critérios de selecção de atletas.

CONSIDERAÇÕES GERAIS

1 – Reportando-nos ao preâmbulo deste documento, verificamos imediatamente a necessidade de se clarificar, dum modo preciso, junto da Direcção-Geral dos Desportos e da Federação Portuguesa de Patinagem, o estatuto que animará o Director-Técnico Nacional, no respeitante a:

– Direitos e obrigações

– Áreas de acção, limites de intervenção e de responsabilidade

– Canais de ligação entre a DGD e a FPP

2 – Dada a natureza complexa e especializada das tarefas a cargo do director-técnico nacional, é nossa opinião que as mesmas só poderão ser executadas com rendibilidade, se esse cargo for preenchido a tempo inteiro. Levanta-se consequentemente a questão da remuneração:

– Vencimento adequado e prestigiante

– Subsídios de viagem e alimentação

3 – Exceptuando os casos pontuais de resolução e aplicação imediata, o programa de trabalho proposto terá de ser entendido como um projecto de efeitos a médio-longo prazo, estrategicamente orientado para uma adaptação gradual da modalidade aos ciclos de realização dos campeonatos europeus e mundiais e, futuramente, ao dos jogos olímpicos.

4 – Reconhecendo a necessidade de um consenso nacional, resultado de contactos directos, devidamente planeados, prevemos a realização, por parte do director-técnico nacional, de reuniões de consulta e de estudo com os vários órgãos competentes, a saber:

– DGD e FPP

– Comité Nacional de Hóquei em Patins e Conselho Central de Arbitragem.

– Associações de Patinagem regionais e Clubes.

– Treinadores, árbitros, dirigentes e atletas.

5 – Na parte que diz respeito ao signatário, uma vez esclarecidas as questões postas nos nº 1 e 2 destas considerações, seria com grande honra e prazer que aceitaríamos desempenhar as funções de Director-Técnico Nacional.

Apesar de sentirmos que a execução das tarefas a que nos propomos não são fáceis, antes pelo contrário, constituem um desafio à nossa experiência, capacidade de trabalho e imaginação, estamos à vontade e esperamos pôr à disposição do hóquei em patins, todos os conhecimentos adquiridos durante uma vida inteira ligada à modalidade, quer como praticante apaixonado, quer como treinador e dirigente estudioso.

6 – Finalmente, permitindo-nos fazer um alerta para a urgência de uma conclusão definitiva sobre este assunto, dadas as seguintes razões:

– Disponibilidade imediata do signatário.

– Necessidade, por imperativos da função, de assistir ao campeonato do mundo que vai ter lugar em Novara, Itália, a fim de poder acompanhar os acontecimentos em primeira mão.

CURRICULUM VITAE

1946 a 1964 – Jogador de equipas em Moçambique, componente das selecções de Moçambique e de Portugal, campeão do Mundo, da Europa e Latino

1956 – Jogador-treinador da Lusalite da Beira

1957 a 1961 – Jogador-treinador do Clube Ferroviário de Lourenço Marques

1963 a 1965 – Jogador-treinador do Sporting Clube de Lourenço Marques.

1967 a 1977 – Treinador de clubes na África do Sul e Seleccionador do Transvaal.

1978 a 1980 – Membro da Comissão Nacional de Patinagem da República Popular de Moçambique.

1982 – Seleccionador Nacional da República Popular de Angola, que participou no Torneio de Montreux e Mundial de Barcelos.

1982 a 1983 – Treinador do Hockey Club Monza – Itália

– Prelector convidado, para o curso de treinadores organizado pela Federação Italiana em Roma e Seminário de treinadores, em Firenze.

1984 – Treinador do Sporting Clube de Tomar

– Prelector: Jornadas Pedagógicas – Leiria

– Prelector: Jornadas Técnicas – Coimbra

O sr. Director Geral, prof. Mirandela da Costa, leu atentamente a seis páginas do documento acima exposto, na minha presença, um privilégio difícil de esquecer, para finalmente, com uma expressão simples, dizer-me, segundo a minha memória: – Para isto há dinheiro!…

O passo seguinte, segundo o Director Geral, seria tratar com a Federação Portuguesa de Patinagem, os detalhes da função que, como eu antevia, ia requerer a elaboração dum projecto mais compreensivo. Para esse efeito, o prof. Mirandela da Costa fez-me saber que me enviaria uma documentação pessoal que recebi em minha casa no dia 3 de Outubro de 1984.

Sobre esta documentação, só posso registar uma coisa: Ela contribuiu para a minha formação final acerca da complexidade que um projecto desta natureza envolve, permitindo que eu arrumasse todos os meus conteúdos, até aí desordenados, em apropriadas “gavetas de arquivo”. Mais, contribuiu também para a absorção de uma linguagem técnica desportiva que de outro modo não teria possibilidades de conseguir.

O projecto final foi dactilografado na própria Federação, e deixado lá ficar para uma apreciação expedita pela Direcção. A resposta, por mim sacada a ferros, veio do Presidente, que elogiou o documento, com o senão que era um ano de eleições e o executivo não querer assumir a responsabilidade de aprovar algo que transitaria para outras mãos. Ao telefone, disse-lhe: – Zé, muito bem, não há vontade política, vemo-nos por aí!

Claro que a nova direcção da FPP, foi mais ou menos a mesma, chegando a utilizar parágrafos do meu projecto, como se fossem da sua autoria. Meditei sobre o assunto e conclui, até porque tive indicadores disso, que o nível de organização proposto, tinha atemorizado todo aquele “sobado”, habituado a viver na confusão. Com uma certeza fiquei. Até aquela data, nenhum projecto devidamente estruturado que pudesse proporcionar um salto qualitativo, tinha entrado na FPP.

Fui assistir ao Mundial, em Novara, a minhas expensas, para confirmar com olhos de ver, o descalabro da nossa participação: – Com a televisão, pela primeira vez em força e bem colocada no recinto, perdemos contra a Argentina, Espanha e Itália, ficando em 3º lugar, tudo isto antecedido pelos discursos folclóricos da praxe. Pelo modo como os federativos olhavam para mim, surpreendidos por me verem  ali sozinho, até parecia que lhes estava a deitar mau-olhado!

Mas não, tudo o que aconteceu era previsível. Por sinal, neste Campeonato do Mundo, sentei-me na bancada com o Marzella, “l’enfant terrible” do hóquei italiano, suspenso pela sua Federação e impedido de jogar, e que roía as unhas a meu lado. Segredei-lhe no meu portuliano: – “Loro sonno pazzi”… con tè fuori, la squadra azzurra non vincerá!”

Bruxo!

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