Zeca Ruço – parte 1

África do Sul

Os dois encontros com Zeca Ruço foram obra do acaso. Apesar de terem sucedido já lá vão quase cinco décadas, não se apagaram da minha memória até porque aconteceram quando a maior “caça ao homem” estava a ser levada a cabo pelas forças policiais em toda a África do Sul.

Mas antes de entrar na história, vou tentar dar uma ideia do ambiente que se vivia em Johannesburg por volta de 1967, a cidade que era conhecida por todos como a “City of Gold”. Esse ano transformou-se numa data marcante da minha vida.

Tendo chegado a Johannesburg em meados de 1965, por pressão dos avós que viviam em Chrisville, muito desejosos de estar com os netos, um com quatro anos e outro com menos de um, por manobra de um destino que não controlamos, em finais de 1966 estava divorciado e, em 1967, ia todas as tardes ao Café Restaurante “Florian”, em Hillbrow, na esquina da Pretoria St. e Twist St., onde lia os jornais Star e Daily Mail, procurando não só entender o país em que teria de ficar, uma vez que afastar-me dos filhos era uma hipótese inconcebível.

Era também no sossego do primeiro andar desse restaurante, que meditava sobre o novo modo de vida por que enveredara, ao ter assumido o controlo total de uma Agência de Viagens e Turismo, a “Lusafrica Agency (Pty) Ltd”, prestes a falir dolosamente, cujo head office se situava na Pan Africa House, Troye St. e a Agência, na Delvers Street. Por curiosidade, esta Agência protagonizou um papel importante no relato que farei da Inauguração do Estádio Salazar, em Lourenço Marques, que prometi há bastante tempo.

Certa tarde, sentado no local de costume, no andar de cima do Florian, a desenvolver uma ideia que me ocorrera para levantar a Agência do impasse em se encontrava, fui interrompido por um “Olá, grande Velasco”. Levantei o olhar e dou com duas caras desconhecidas. Era o Zeca Ruço, como mais tarde vim a saber, acompanhado por uma moça assaz bonita, uma autêntica brasa, como muitas que passeavam pela Eloff Street…! 

José Daniel dos Santos Rocha

José Daniel dos Santos Rocha

Pois bem, como ambos estavam ali parados defronte de mim, sorridentes, sugeri que se sentassem o que acederam de imediato. Travámos umas banalidades, em Inglês, durante as quais ele, de forma entusiástica, não se cansava de esclarecer a moça que eu era um famoso jogador de hóquei em patins, campeão do mundo, etc., etc., etc., desporto que ela desconhecia. E, para mim, o José Rocha, (foi assim que se apresentou), aparentemente motivado pelos sucessos dos hoquistas moçambicanos, foi revelando que era filho de um chefe ou sub-chefe da polícia de Lourenço Marques e que chegara a treinar como guarda-redes no Grupo Desportivo Malhangalene, durante um curto período de tempo. Levantaram-se pouco depois e saíram com o típico “we’ll see you” … Por incrível que pareça, mal desapareceram, abri o jornal para continuar a ler sobre a “caça ao homem” montada para apreender um tal famigerado Zeca Ruço.

Uns dois dias depois, José Rocha apareceu com um amigo, e continuámos a lembrar as proezas do Hóquei em Patins de L. M., ele com redobrado entusiasmo. Eventualmente, como se tornara hábito meu, entreguei-lhe dois ou três cartões da Agência de Viagens em caso de desejar viajar, ou dar a outra pessoa conhecida dele. Ficou a saber da minha actividade e eu, absolutamente nada sobre a dele, pois referira-se vagamente a umas viagens de negócios que fazia pelo país. Foi a ante-penúltima vez que o vi.

Uns dias depois, ao atravessar a rua principal de Hillbrow vindo do Florian, em direcção ao Donney, outro Café cosmopolita na esquina das Pretoria e Quartz St., ouço uma voz: – “Hi, Zeca Ruço”! Olhei instintivamente sobre o ombro e dei com o José Rocha… Fiquei siderado! O moço afastava-se na direcção oposta e eu nem queria crer que andasse por ali com aquele à vontade todo, a gingar o físico atlético, de “t-shirt” e “tight jeans” da moda. Mas segundo se dizia, isso explicava-se porque ajudara vários imigrantes recém chegados ou sem emprego, mesmo que para isso tivesse de roubar, o que caiu bem no seio de alguns elementos da nossa comunidade, não havendo quem o denunciasse. Suponho que, provavelmente, até guarida lhe davam.

Mas uma coisa que não batia certo, pelo que conhecia da leitura dos jornais e de relatos, era o grau de histeria propalada pela policia através de comunicados bombásticos que a Imprensa reproduzia. Que o visado era um criminoso altamente perigoso, que andava armado, que não se renderia, etc… Tudo isto fez-me acreditar que a ideia era preparar o ambiente para o abater. Ora, o que se conhecia do Zeca Ruço e eu confirmo, é que se tratava de um gatuno, de um larápio tipo escala prédios e paredes dos hotéis e pensões, como o célebre Spiderman”, onde surripiava dinheiro e outros valores. “Gangster” não era, pois os verdadeiros mafiosos que enxameavam Hillbrow, Libaneses, Jugoslavos, Ucranianos Italianos, etc., foram todos engavetados, condenados ou recambiados para as suas terras de origem, como resultado das rusgas diárias que envolveram milhares de polícias em uniforme e à paisana, brancos e negros que, meses antes, de forma sistemática, tinham levado a cabo por toda a cidade.

Para mim, a paranóia acerca do Zeca Ruço não passava de um ressentimento das forças policiais que andavam ressabiadas pelo facto de não conseguirem deitar-lhe a mão. Falo do que constatei pessoalmente tendo em conta o contexto da época em que não li registo algum em que ele tivesse cometido qualquer crime de sangue. Antevendo um fim trágico para este moço, pensando no pai, um chefe da polícia, resolvi interferir, contactando um amigo, oficial do exército em Lourenço Marques, patrocinando a ideia dele regressar e cumprir o serviço militar e assim redimir-se e ter a oportunidade de uma nova vida.

Mas o destino assim não quis. Sucede que o Zeca Ruço, apertado na África do Sul, deu uma saltada até Lourenço Marques, que só soube quando, prosseguindo as démarches para redenção do rapaz, fui informado pelo oficial amigo, que acredito ter começado a mover os cordelinhos, que já não havia hipóteses, – “O gajo esteve aqui e cometeu uns assaltos e roubos, portanto esquece…!”. – Sugeriu, e foi isso que fiz até que finalmente se verificou a prisão do Zeca Ruço, em Durban, na piscina dum Hotel onde, deitado numa cadeira, apanhava banhos de sol. Cercado por meia dúzia de agentes, não reagiu e deixou-se algemar pacificamente.

Na Parte 2 que se seguirá, prosseguirei com o relato do fim trágico do Zeca Ruço, a umas centenas de metros da minha residência em Primrose Terrace, num andar do magestoso edifício Tygerberg.

 

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1 Response to Zeca Ruço – parte 1

  1. FHDR says:

    Seria numa forma teatral, equiparado ao chamado Robin Hood na África do Sul !…

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