1963
Antes de entrar neste ano, volto a um acontecimento de vulto registado no ano passado, depois do regresso do Eng. Chefe Eduardo Barbosa que viajara para Moçambique e desta província para a Metrópole. Relembrando, durante a sua ausência, o Eng. Adjunto Lobo que assumira interinamente a Chefia da Brigada, transferiu o Topógrafo/Chefe para as Obras Públicas, instruindo-me para liderar os Serviços Topo-Hidrográficos.
O acontecimento referido teve a ver com uma situação ocorrida na fronteira cuja origem se deveu às vulgares disputas fronteiriças. Um lado pilhou um galinha, o outro vingou-se e terá roubado uma vaca, brigando depois à catanada, o que terá provocado feridos. O resultado foi que a tropa Indonésia interveio e disparou, com resposta pronta do nosso lado. Tudo isto num crescendo de um dia para o outro, com mensagens do capitão da Companhia de Cavalaria aquartelada em Bobonaro, aos seus superiores. Foi criada uma situação tão crítica, tipo : “aí vêm eles!” que o Governo Geral da Província, alarmado, preveniu-se e decidiu convocar o Exército de 2ª Linha. O incidente na fronteira foi aproveitado, (a Psico-Social operava já nessa região, com padarias e outras iniciativas e, pelo que se ouvia, algo teria de ser ocultado), e nada como uma ameaça de invasão…
Num espectáculo que jamais esquecerei, cerca de 3000 homens, se bem me lembro, descendo das montanhas, montados nos seus “poneys” e outros a marchar, ostentando bandeiras portuguesas, os seus trajes de guerreiro, as suas espadas e armas, algumas das quais seriam troféus ganhos aos japoneses. Num “show” de lealdade, responderam à chamada e dispersaram-se imediatamente pela cidade e redondezas.
Imaginem agora que o Comando do Exército de 2ª Linha ficou instalado na nossa Brigada de Portos! Por uma questão de hierarquias no relacionamento com os elementos mais graduados desse exército, o Eng. Chefe (antigo Major de Engenharia) foi equiparado a Tenente-Coronel, o Chefe de Secretaria (ex-militar da GNR, segundo ele), a Major, reservando para mim a patente de Capitão… Claro que declinei, afirmando contudo que daria todo o meu apoio no que fosse preciso, menos numa “guerra do Solnado” até porque, à mínima ameaça de estalar uma, levaria todo o pessoal da Brigada e mais os que coubessem na nossa lancha e rumaria para Darwin. Tinha bem presente as histórias relacionadas com os campos de concentração de Liquiçá e Maubara, onde os invasores Japoneses concentraram cerca de um milhar de civis brancos e outros locais, homens e mulheres, que pertenciam à Administração do Território e que muito sofreram durante os anos de cativeiro. Conta-se que alguns timorenses que tentaram aproximar-se das cercas de arame, rastejando, para passar alguma comida aos infelizes detidos, foram fuzilados no local e deixados expostos, como aviso a outros.
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Prosseguindo… A Brigada de Portos, instalada num dos armazéns das instalações da Capitania possuía um extenso espaço à entrada dos seus escritórios que se transformou numa parada e onde foi erigida uma bandeira nacional à qual, uma companhia de guerreiros prestava honras ao toque da alvorada. Como partia muito cedo para os meus levantamentos, só duas ou três vezes é que assisti a esta agitação. Uma delas fez-me rir. Postados à entrada dos nossos escritórios, transformados em Comando Logístico, dois guerreiros, trajados à maneira, com as suas lipas multicor, lenços na cabeça a suportar uns penachos e meias luas de prata caídas no peito sobre colares de amuletos, faziam guarda à entrada da nossa porta. Não me ri dos guerreiros que levavam a sua missão a sério, mas sim do tenente-coronel Chefe da Brigada, acompanhado do major Chefe da Secretaria. Tinham-se imobilizado e retribuíam com uma continência, à posição de sentido, de espada desembainhada ao alto, efectuada pelos militares de 2ª Linha, após o que, em passos marciais, entraram pela porta a dentro.
Felizmente tudo isto não passou de um “fumo sem fogo“, que custou milhares de contos ao Governo. Nunca houvera razão para o alarme e pânico gerados. Passados vários dias, toda a trama foi esclarecida, tendo o seu responsável sido recambiado para a Metrópole. Como sempre, nestas confusões na fronteira, as autoridades de ambos lados reuniam e a calma voltava a imperar.
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A vida continuou sem pausas para mim que me contentava em chegar a casa e reconhecer que o meu filho crescia a olhos vistos.
E, em menos de um tempo, Rui Paulo tornou-se num rapazinho…
E mais ainda…
Aliado à tendência do pai, de descobrir novos mundos… mesmo que em estradas de areia!
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Com a serenidade de volta, pude começar a controlar o tempo necessário para terminar os trabalhos dos Serviços de Topo-Hidrografia, não abdicando de ir nadar aos fins de semana na pequena e calma praia do Bairro do Farol, com a esposa e amigas.
A propósito desta fotografia, em meados do ano anterior, toda a família foi para esta mesma praia passar uma manhã e estrear o barco de borracha com que o meu filho “navegava” na varanda. Zé Quique acompanhava-nos como era usual.
Coloquei o barco à beira da água, mais ou menos 30 centímetros dentro desta, de modo a que o filhote pudesse sentir a pequena ondulação. Ficámos deitados a seu lado, a bronzear e depois de um certo tempo, a esposa entrou dentro da água e afastou-se. Fiquei ainda algum tempo, a calçar vagarosamente um par de barbatanas, pois sempre as usava quando fazia natação. Levantei-me e, em duas passadas, mergulhei e fui nadando por baixo da água até esgotar o ar dos pulmões.
Quando volto à superfície, ainda com os olhos nublados pelo escorrer do liquido, olho para o local donde partira e não vejo o Zé Quique mas sim o bote de borracha a boiar, arrastado por uma onda mansa mais longa. Nesse instante o Rui Paulo gatinhou para a frente e pôs-se de pé, tombando borda fora. Penso que bati o meu recorde pessoal e o do Spitz! Com braçadas vigorosas e movimentos enérgicos das barbatanas, fiz uns bons vinte e tal metros, afundando-me quando me aproximei do local e indo pegar o filho que submergia. Rapidamente voltei à tona e, segundos depois estava com ele agarrado pelos pés, de cabeça para baixo, como um coelho, a dar-lhe umas palmadas nas costas até expelir a água que já teria nos pulmões. Tossiu e chorou muito mas recuperou. O que nunca me passou pela cabeça, foi que o Zé Quique, entusiasmado, resolvesse também dar um mergulho. Mas felizmente tudo acabou bem. Só que durante muito tempo, a imagem de ir em desespero agarrar o filhote que se afundava perseguiu-me. Tive vários pesadelos por causa dela.
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Entretanto, conheci na Messe dos Oficiais, uma equipa completa de médicos militares, recém-chegada, cujos nomes se perderam com a passagem dos anos, que um dia vieram até minha casa perguntando-me se podia transportá-los ao Hospital Militar de Lahane, dado que houvera um acidente com uma arma de fogo e um soldado jazia lá em estado muito grave. Claro que acedi imediatamente e levei-os, sentindo que não estariam lá muito satisfeitos pelo facto de andarem a pé nas suas missões que incluíam a população civil. Eu bem compreendia o sentimento que os invadia pois várias vezes tinha visto alguns meios de transporte militares, parados na Praia da Areia Branca, a aguardar que alguns familiares de outros oficiais acabassem de se banhar.
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Ora a ama de meu filho, Virgínia, que estava em estado de gravidez adiantado, não tendo comparecido certo dia, calculámos que tinha chegado a hora “H“. Eu e a minha esposa Deanna fomos dar com ela na povoação vizinha de que era residente, numa habitação de palmas miserável e escura. Depois de ver que o bé-bé tinha nascido, impressionados com as condições, fomos em busca dos médicos acima mencionados os quais, como era de se prever, prontificaram-se de imediato a vir connosco.
O resultado foi que permaneceram na povoação o resto do dia, atendendo não só a nossa Virgínia e seu filho, como também outros aldeões, velhos e jovens, que aproveitaram para fazer fila e se queixarem disto ou daquilo. O desvelo com que estes médicos trataram todos foi digno de se registar. Regressámos calados, possivelmente a pensar como tinha sido possível, depois de 400/500 anos de presença, termos uma povoação destas a pouco mais de um quilometro do nosso bairro, na capital.
Num aparte, as minhas relações pessoais limitavam-se aos militares que conheci por sermos vizinhos e termos colaborado em tempos difíceis, e os colegas da Brigada de Portos, como já relatado. Todavia, desejo recordar, além da família Carrascalão com quem me cruzava frequentemente e com quem pouco ou nada convivi, o médico dentista local, um goês como eu, de quem me socorri quando um fortíssima dor de dentes me afligiu. Foi num sábado, cheguei ao seu consultório, uns 3 minutos para o meio dia, (que era hora de fecho), e fui dar com ele de braços estendidos com a assistente a retirar-lhe a bata.
Não me quis atender, que não eram horas de aparecer por lá. Olhei para ele com uma cara séria e disse-lhe: – “O senhor vai atender-me, pois sofro… e se não o fizer, sento-me na sua cadeira de dentista e fico aqui até segunda-feira, para ser o primeiro!“ O homem olhou-me espantado com tal irreverência, mas voltou estender os braços para a assistente poder atar-lhe a bata novamente. Aproximou-se carrancudo e, sempre a chagar-me os ouvidos que aquilo não eram horas de lá aparecer, inspeccionou-me a boca dizendo que ia raspar o dente. Mal senti a broca, encolhi-me pois tive a sensação imediata que ela girava a umas 20 rotações por minuto. – “Pare!“ – gritei – “Arranque-me é o diabo do dente!“
No dia seguinte, já aliviado, fui dar um passeio a pé pela vizinhança e descubro que o dentista morava ao virar da esquina. Estava na varanda a seguir com o olhar a filha de uns 3 ou 4 anos, que andara até à rua. Fingi que não o vi e peguei na criança, falando para ela de modo a que ele ouvisse: – “Que menina tão linda! Como te chamas… etc!“ Aí, o médico dentista veio ter comigo e desabafou: – “Ela não come… está magrinha… eu e a minha mulher já não sabemos o que fazer… veja, veja os bracinhos dela!“
De facto, a garota era leve como uma pluma. Olhei-a bem nos olhos, disse-lhe ao ouvido, afagando-lhe os cabelos: – “Uma menina tão bonita tem de ouvir o Papá, não é verdade?“ – Ela meneou a cabeça, que sim – “A comida que a Mamã faz é para se comer, não é assim?“ – “É…“ – respondeu toda sorridente.
Não sei qual foi o resultado desta minha acção psicológica. Mais tarde cruzámo-nos umas poucas de vezes e conversámos sobre banalidades. Nunca lhe perguntei se a garota tinha reagido positivamente à minha intervenção, nem ele me falou disso. O que não desejava era ter o único dentista da cidade como meu inimigo! Felizmente não mais precisei de ir ao seu consultório… aquela broca com as suas “20 RP/min“ era suficiente para me deixar arrepiado…
…
Repescando as minhas novas funções, agora com a responsabilidade de levantar os portos da costa Norte e da Ilha do Ataúro, enfrentei um revés. Em finais do ano passado, fora planeado pôr a lancha Lacló a seco. Para o efeito, foi construída uma rampa, desde a água até ultrapassar a linha de maré cheia, no início da qual uma estrutura em “V“, sobre rodas, receberia a quilha da lancha que seria depois empurrada para o local. Eu não estava presente, mas vim a saber que uns “experts”, (numa terra onde há jacarés no mar e camarões nas montanhas, estes também existem), tiveram a brilhante ideia de rodear a lancha com um cabo de aço e puxá-la com uma máquina escavadora, de lagartas! Não repararam que a embarcação era de contraplacado e foi como se estivessem a enforcar na horizontal um dinossauro. O cabo de aço apertou-se e literalmente cortou os costados… A reparação foi morosa, houve que importar chapas de cobre e respectivos rebites da Austrália pois decidiram, e bem, forrá-la com esses materiais. Só recebi a lancha quando me encontrava em Manatuto, dois meses depois.
Entretanto, a ida a Baucau, Lautém e Laga, foi feita na embarcação “Nordestinha“, por especial deferência do Empreiteiro das obras do cais.
– Segue-se Parte 5.
Bom dia! Antes de mais queira receber os meus melhores cumprimentos.
Eu sou Flavio Miranda e Assessor para o Património Arquitectónico da Secretaria de Estado da Arte e Cultura, e basicamente o meu trabalho é identificar o patrimonio arquitectónico de origem portuguesa em todo o territorio de Timor-Leste…e a dois anos e maio que ando a fazer levantamentos no terreno para um dia poder classificar este patrimonio deixado pelos portugueses como patrimonio de interesse nacional. Uma das dificuldade é sempre encontrar documentação reletivos aos edifícios ou urbanizações e outro tipo de património cultural de timor.
E ao consultar o seu blog, vejo que tem muita informação gostaria de pedir se é possível enviar-me via email (nunesdealmeidapt@gmail.as com) imagens e textos relativos a timor em ficheiro PDF? Neste momento estamos a preparara a nossa base de dados e quando estiver a funcionar a 100% colocar estas mesmas imagens ( com direitos de autoria sua)…
Cumprimentos,
Flavio Miranda
Caro Miranda
Devo dizer que quando cheguei a Timor (onde permaneci desde Julho de 1961 a Novembro de 1963), fui encontrar uma Província num estado de atraso de que não suspeitava, tal como descrevo no meu Website. Não existia uma urbanização para além da marginal e os edifícios de monta em Díli eram o Palácio do Governo e o das Finanças, o Hospital em Lahane e a Igreja de Motael. Quanto a fotografias, de caracter pessoal, limitam-se às que publiquei no meu Site pois reservava os meus rolos para fotos de trabalho. O problema era que tinha de mandar revelá-las em Darwin e isso obstou a que me preocupasse com os poucos edifícios existentes. Acho que só registei um edifício muito antigo cuja foto tenho algures num ficheiro. Procurá-la-ei para lhe enviar oportunamente. Aliás, temos de ter em consideração que ocorreram destruições sob o domínio indonésio que obviamente devem ter feito tudo para apagar os vestígios da nossa colonização. Lamento mas pouco mais poderei avançar sobre o assunto. Não sei bem que imagens e textos em PDF se refere…
Ao seu dispor.