Os hoquistas ma’Bandidos – 1

O sonho…

Não foi um sonho, foi um pesadelo!

Acordei sobressaltado, sentando-me na cama, com o coração a bater vertiginosamente. A ténue luz que penetrava pela janela entreaberta foi delineando o mobiliário do quarto e o contorno de minha mulher que dormia a meu lado o sono dos justos, sem ter-se apercebido de nada. Por fim acalmei-me e voltei a recostar-me, olhando para o tecto e procurando repescar as imagens do sonho que a minha memória ainda retinha, uns fragmentos que iam e vinham, desaparecendo de imediato, mas que eu esforçava-me por recuperar.

Aos poucos e poucos, a colagem e sequência, deram origem a um guião de puro terror…

Não via nada e quando olhava para baixo, puxando o queixo contra o peito, conseguia distinguir o fato-de-macaco laranja que nos obrigaram a vestir logo no primeiro dia e ouvia o tilintar do metal conforme eu e os meus companheiros íamos andando. Tinham-me enfiado um capuz na cabeça e suava às estopinhas com o calor, empurrado por um gorila qualquer, sabe-se lá para onde. Era forçado a dar passos curtos devido às algemas nos tornozelos ligadas às das mãos por meio de uma corrente que depois apertava em redor da cintura. O que me chateava mais, era uma algema dos pulsos que escorregava e ficava caída, pois faltava-me uma mão, e um parvo qualquer vinha logo puxá-la pelo braço acima quase até ao cotovelo. Momentos depois, o brutamontes mandou-nos parar e, logo de seguida, uma voz de barítono se fez ouvir, dirigida a outro chocalhar de correntes que soava no canto oposto:

– São estes quatro os ma’ Bandidos?

– Não sei! – Respondeu alguém, num tom tremido – não consigo ver por causa do capuz…

– Tirem-lhe o capuz? – Foi ordenado imediatamente – agora que já vê… reconhece-os?

– Não… – choramingou a voz tremida – Estão todos com capuz!

– Não os reconhece? – Inquiriu o barítono, num tom muito alto e deveras agressivo.

Re… reconheço, sim… são eles… – apressou-se o desgraçado a gaguejar, baixinho, como se estivesse num confessionário.

– Levem este verme para a jaula!

Pronto, tínhamos sido tramados, ao jeito dos Somozas e do Pinochet, do Vargas e do Trujillo, do Porfírio Diaz e do Duvalier, para não falar dos famigerados Hitler e Stalin. O espectáculo não passava de um tribunal canguru.

Naquela escuridão total, consegui detectar um pequeno orifício no capuz, um tanto acima da minha testa.

Na escuridão do capuz vislumbrei um pequeno buraco acima da minha testa

Dentro do capuz vislumbrei um pequeno buraco.

Movi a cabeça várias vezes e estiquei o pescoço para ver se o alcançava com a vista. Aí, o gorilaço, ao dar-me uma tapa na cabeça por ver-me a mover, por sorte minha, fez com que o buraquinho ficasse acessível, transformando-se numa luneta de teodolito que me permitiu vasculhar as redondezas. Topei o General Bucho que comandava a prisão, sentado a uma mesa, mesmo defronte de mim.

Encostando mais a vista junto do buraco, alarguei o campo de visão e deparei-me com o facínora.

Este indivíduo execrável, o General Bucho, estava com ar de poucos amigos, o que não prometia coisa boa.

Aproximando a vista do buraquinho e de modo a ampliar a imagem, reconheci os outros dois facínoras, o General Rums à direita do Comandante e o General Chino à sua sinistra. Apesar da sombra causada pelos largos sombreros, não passaram despercebidos, reconheci-os imediatamente quando olharam fixamente para mim, após o Comandante ter escrito e assinado algo num papel.

O mais pequeno, de sombrero vermelho, enquanto elaborava o que presumo ser a acta da sessão, monologava uma ladainha que eu já ouvira algures na TV, em inglês: – “Known knowns… known unknowns… e unknowns unknowns, que traduzido seria algo como: – “Há coisas que sabemos que sabemos… há coisas que sabemos que não sabemos… e há também coisas que não sabemos que não sabemos … O homem parecia um maluquinho e só parou quando a voz cavernosa do Comandante o interrompeu, a olhar para mim com uma expressão que não augurava nada de bom.

– Ahora, usted…! – Gritou, com os olhos raiados de sangue.

Encostando a vista ao buraco, alarguei o campo de visão.

E pronto, sentença passada sem contraditório, com a ajuda de uma infeliz e atemorizada testemunha!

Estremeci em face da raiva vomitada por aquela personagem maquiavélica, antecipando que iam amarrar-me a um canhão e chicotear-me como se fazia na Idade Média e deixar-me com as costas cortadas. Já me tinham dado violentas bastonadas, enfiado a cara num barril cheio de água, quase me afogando. Hesitei mas levei logo um empurrão do gorila sempre postado atrás de mim e fui caminhando, em passinhos de mulher chinesa, ouvindo o tilintar das minhas correntes, ao mesmo tempo que a maldita algema, agora pendente, magoava-me ao bater repetidamente contra o meu joelho. Que chatice, se ao menos tivesse as duas mãos, estaria agora mais confortável.

Minutos depois, recebendo uma brisa pelo pescoço acima, apercebi-me que estava ao ar livre. Respirei fundo, aspirando ao máximo a frescura da aragem, enquanto me guiavam para o local onde iriam vergastar-me. Fiz um esforço titânico para espreitar pelo buraquinho e, quando consegui focar a paisagem exterior, um rubor súbito apossou-se das minhas faces e o meu coração saltou repetidas vezes, ao dar com um apetrecho de guerra apontado para mim. Iam despachar-me com um canhão, imagine-se!

Foi este o cenário que me acordou.

Foi esta imagem do pesadelo que me acordou…!

Com as pernas a enfraquecerem, ainda olhei para o buraco da peça para saber de que calibre se tratava, quando ecoou a voz de comando: – PREPARAAAR…!

Não deu para ouvir nem sentir mais nada… Um silêncio infinito abateu-se sobre mim e acordei todo suado, dominado por incontrolável agitação…!

Curioso é verificar como este tipo de pesadelos surgem subitamente vindos das profundezas dos arquivos mentais sempre presentes no nosso subconsciente. Os ficheiros lá guardados, acredito, correspondem a sensações ou experiências ocorridas na realidade. Esses ficheiros, após tantos anos, acabam por ganhar camadas de poeira sem contudo obliterar os conteúdos registados nas pastas. O problema é que as páginas que as pastas contêm, encontram-se num estado caótico, sem ordem de entrada ou de datas… Apesar disso, ficou claro para mim que o pesadelo tivera origem em factos vividos, daí que bastou pegar na ponta de um fio para desfiar a meada, o que actuou como um gatilho e trouxe ao de cimo uma invulgar aventura em que estive envolvido com vários hoquistas, companheiros meus.

Pelo inédito da aventura, descrevê-la-hei, baseado na atmosfera da época, na apreciação pessoal do evento, no meu próprio estado de espírito na altura, pois desconhecia o que se passava na cabeça dos outros.

Estávamos talvez um tanto fartos da rotina da vida, e como este núcleo duro reduzido da malta do SNECI era muito especial, bastava um alvitrar qualquer coisa e os demais aceitavam sem pensar. E uma vez aceitando era muito difícil recuar. Era altura da Páscoa e logo no primeiro dia de férias, o grupo formou-se na esplanada do clube, com aquele ar ocioso de quem não sabe como preencher os dias até ao recomeço das aulas. Encontravam-se presentes, além de mim, o Alberto Moreira, o António Luís Nunes Assunção, o Edmundo Costa e o Edward (Teddy) Warne, o único hoquista anglo-saxão. Poderiam ter sido outros, mas assim não sucedeu e um de nós, (impossível determinar hoje quem), lançou para o ar a brilhante ideia de fazermos um safari para o interior de África. De um certo modo suicida, ninguém reagiu negativamente e até fomos colaborando com as nossas opiniões acerca do modo como alcançaríamos esse objectivo, apontado para o período de férias de 3 meses que sucediam ao ano escolar. Tínhamos, portanto, 2 meses de preparação.

Deliberámos manter segredo sobre o que tínhamos em mente e todos os dias reuníamos-nos em locais diferentes, onde a conversa se prolongava durante horas, a planear as acções e as tarefas de cada um. Eu fiquei de traçar o percurso num mapa, cujo destino agora era mais claro porque sugeri irmos até Que-Que, um vilarejo situado entre Salisbury e Bulaway, na Rodésia do Sul, onde vivia a minha irmã Maria de Lurdes com o seu marido Douglas Roberts. Além disso teria de preparar uma lista de tudo quanto necessitássemos. O Assunção, o Moreira, o Edmundo e o Teddy encarregar-se-iam da procura de armas e outros apetrechos e o primeiro teria ainda a seu cargo carregar dezenas de cartuchos com zagalotes, um vez que possuía o equipamento necessário para a tarefa, já que a calibre 12 era do Pai. Passado um par de dias, fizemos o ponto da situação, com o meu mapa e rota traçada a esmo, bem como a extensa lista logística que teríamos de riscar conforme fôssemos obtendo o que estava anotado.

Não era coisa menor, as armas apareceram e foram guardadas no quarto do Assunção, por detrás dum enorme guarda-fatos que se posicionava em ângulo a um canto. A adorável Mãe deste, que nada suspeitava, trazia-nos uns biscoitos e refrescos, satisfeita por reunirmos lá em casa, bem debaixo do seu olhar materno. Armazenadas foram: uma calibre 12, um colt 45 militar que o Teddy trouxera, a arma mais importante de calibre 30.06, a chamada ponto 30 que, se me recordo bem, veio da casa do Edmundo e duas espadas japonesas provenientes do Moreira. Faltavam pelo menos duas espingardas.

À falta de melhor, como alguns de nós éramos atiradores juniores de tiro ao alvo do clube, lembrámos-nos que podíamos levar umas do armeiro do SNECI. Obviamente, deixámos esta acção para a noite anterior ao dia da partida. Estas espingardas eram simples e leves e destinavam-se a abater caça miúda para as nossas refeições. A cinquenta metros “era tiro e queda”, vangloriávamos nós.

A lista era extensa, procurei pensar em tudo que necessitaríamos, mas todos os dias havia sempre algo a adicionar, sugerido pelos demais companheiros. Realmente, não sei o que se passara connosco pois tínhamos levado tudo isto muito a sério. Assim, a lista, elaborada metodicamente, tinha que contemplar o peso aproximado de 120/150 quilos segundo os meus cálculos, uns 30/37 quilos para cada um transportar. Assim, elaborei as seguintes colunas:

– Vestuário – 5 kgs: – Camisas, calções, calças de ganga, meias altas, meias curtas grossas, botas, galochas, sapatos, camisolas interiores e de lã, ponchos de vinyl, chapéus.

– Alimentação:9 kgs: – Açúcar, sal, pimenta, bolachas, azeite, vinagre, leite condensado e em pó. Bananas, ovos cozidos e outra comida para os primeiros dois dias iriam em marmitas adequadas e a água em cantis de campanha.

– Ferramentas: – 7 kgs: – martelo de orelhas, marreta, alicate, pregos de 2” e 3”, serrote, serra média, machado, catanas e furador para madeira.

– Caixa de Pronto Socorro: – 2 kgs: – álcool, aspirina, quinino, xarope Benzo-Diacol para constipações, algodão, pensos, gaze, tintura de iodo e mercúrio-cromo, pinças, x-actos, estojo de injecções, este pertencente ao Edmundo que nos mostrava como fazê-las, picando a própria perna…

Materiais de construção:5 kgs: – Rolos de cordas, rolos de arame, roldanas simples e roldanas desmultiplicadoras, grampos.

Diversos:3 kg: – mochilas, binóculos, bússola, lápis, borrachas, canetas bic, mapas e cartas do percurso, caixas de fósforos, isqueiros, lanternas de 2 e 5 baterias, petromax pequenos, respectivo stock de camisas, fogareiro a petróleo, benzina e marmitas.

Abrigos:5 kgs: – tenda individual, tenda conjunta média, sacos-cama, rolos de rede mosquiteira.

Armas:12 kgs: – Ponto 22, calibre 12 (2 canos), ponto 30, balas e cartuchos.

Em resultado do peso estimado, houve quem sugerisse que devíamos ir a cavalo, (também não me recordo de quem partiu essa ideia genial), mas discutimos acaloradamente os méritos da proposta, pois se dois “cow-boys” cavalgavam o mesmo cavalo,  poderíamos de facto distribuir a carga o que seria menos cansativo para o binómio cavaleiro-montada, dizia um, e chegaríamos mais cedo ao destino, lembrava outro. O envolvimento de todos era evidente e cometimento tornou-se numa obsessão e à pergunta resultante: – onde iríamos arranjar as bestas, até parece que todos nos lembrámos do lugar.

– No Centro Hípico, a seguir ao campo de golfe da Sommerschild!

Logo no dia seguinte, deslocámos-nos para esse local que passámos a frequentar todas as tardes de modo a sentirmos o ambiente, amigar com os cavalos e, de caminho, aprendermos umas coisas.

Foi a partir deste ponto que a aventura começou verdadeiramente e cujo relato detalhado terminará nos próximos artigos, no Da Cartola:

– “Os hoquistas ma’Bandidos – parte 2 e 3”.

 

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10 Responses to Os hoquistas ma’Bandidos – 1

  1. Eric Alves says:

    kkkkkkk
    muito bom Chico!!
    esperando pela parte 2.

    fortes abraços!!!

  2. Velasco says:

    Alô Eric
    Devo acabar nos próximos 2-3 dias. Até eu já estou ansioso por finalizar. Estou a acabar umas ilustrações porque esta história verídica ocorreu numa altura em que não andávamos com máquinas de fotografia.
    Um abraço

  3. ROMÃO FÉLIX says:

    CHICO
    Embora eu não tenho feito parte dessa quadrilha de MABANDIDOS não quero deixar passar,sem te dizer que a história está de morte,salvo seja, ao mesmo tempo, para dizer que os mabandidos ao pé das quadrilhas da malta do ALTO MAÉ,eram verdadeiros meninos de coro, ainda bem,para vocês, que nessa altura não foi possível a realização de nenhum duelo…….hehehehehehh,desculpa a brincadeira Chico.
    Continua a escrever,para que a malta se vá deliciando com cenas demonstrativas da sã camaradagem que nessa altura existia no nosso inesquecível MOÇAMBIQUE,um abraço

  4. Daniel Muralha says:

    CHICO (No. 4!) : So li ainda esta primeira parte (a acentuacão disto vai escassa…) Estaria tambem a suar por vos (antes de passar a segunda parte!) caso soubesse que tinham sido tão bons MA’BANDIDOS quanto foram certamente… praticantes do hoquei patinado! Vejamos o que a 2a. parte nos traz…

  5. Velasco says:

    Ói, Daniel

    Vai lendo, não só a 2ª como a 3ª parte (final). Escreve algo depois.

    Uma abração.

  6. Velasco says:

    Alô,Romão

    Na verdade, se compararmos com a malta do Alto-Mahé e não só, éramos de facto uns meninos de coro, ingénuos e um tanto influenciados pelas “cow-boyadas” do Scala. Todos os ma’Bandidos de que fazia parte talvez carregassem os seus problemas pessoais, que a obsessão pelo Safari veio afastar das suas mentes. Se na altura não houve duelo entre bairros, foi porque eles sabiam que nós seríamos muito mais rápidos a fugir, sobre os patins…!

    Abração

  7. Alexandre Velasco says:

    Olá! Chico,

    Parabéns, está excelente.
    Conheço bem as tuas capacidades para a BD e para as letras, mas esta deixou-me deslumbrado.

    Um Abraço

    Alexandre Velasco

  8. Velasco says:

    Olá, Alexandre.

    Em primeiro lugar espero que tu e os teus que estejam bem. Folgo em saber que gostaste desta história incrível mas verídica que levou um certo tempo a repescar do baú das memórias. E finalmente, agradecer-te o comentário na página, pois é um “feed-back” importante.

    Um forte abraço

  9. Armando Cabral de Almeida says:

    Amigo Chico,
    Lembro-me dessa aventura como fosse hoje.
    Sim ainda me lembro do resto dessa malta unica no dia seguinte a tentar perceber
    o que se tinha passado, como e porquê.
    Ansioso pelos outros episódios
    Mais uma das inumeras lebranças da muitas tranquinices que só a malta do SNECI
    se lembrava de fazer.
    Estou certo que mais historias bem engraçadas irão surgir
    Um abraço

  10. Velasco says:

    Caro Armando

    Sobre o dia seguinte, ouvi dizer que ao verem no chão uma pegada pouco vulgar, houve quem dissesse: 44 biqueira larga, só o Moribundo…!

    Agora… traquinices? Aquilo foi autêntica insanidade e ainda hoje estou para perceber que raio é que nos deu para aprontar um coisa daquelas!

    Abração

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