Mudança de hemisfério…
Nadar em mares quentes durante uma vida inteira e mergulhar em águas de temperaturas mais baixas, é uma experiência inédita. Na Europa, a primeira vez que atirei-me de encontro a uma onda, foi em Cascais, e saí de lá com mais rapidez do que quando entrei, sem fôlego e a ranger os dentes de frio e nunca mais repeti a proeza. Mas ficou uma lição, que estes tipos de impulsos devem ser cautelosos e graduais.
De regresso dos Estados Unidos, onde fora assistir aos I Jogos Mundiais, realizados em Santa Clara, na Califórnia, fui viver no Bairro Comendador Joaquim Matias, em Paço de Arcos, a dois passos do seu pavilhão, uma zona que já conhecia e que percorria para apanhar autocarros e por vezes boleia até à estação dos comboios, parando frequentemente na tasca do Chico do Balão. No edifício ao lado, residia a família Serra, com cujo patriarca trocava impressões sobre o hóquei em patins, tendo ficado a saber que o seu filho Alexandre Serra militava na Itália, no Hockey Club Monza.
Neste enorme dormitório, o meu pequeno e acolhedor apartamento em Portugal, iniciei exercícios penosos com lápis e canetas, visando transferir para a mão esquerda, uma capacidade aceitável de escrita. Debrucei-me durante três a quatro horas diárias, a rabiscar folhas atrás de folhas, tentando estilos de letras acabando por descobrir que a escrita se tornava fácil se utilizasse maiúsculas e ainda hoje escrevo assim, sem dificuldades.
Não foi fácil, pois o cérebro é possessivo e prega-nos partidas um tanto frustrantes. Em todo caso, para dar um sentido ao que escrevia, peguei em antigas notas guardadas em pastas e, dando-lhes uma certa ordem, planifiquei um pequeno livro, onde procurei expor os meus pontos de vista, sem presunções literárias, resultantes da experiência por mim vivida no hóquei em patins. A Editorial Presença, de uma forma cavalheiresca, típica do seu administrador, Dr Espadinhas, aceitou o manuscrito, as fotos, os esboços desenhados, estes posteriormente refeitos por um dos seus desenhadores.
O livro foi publicado a tempo de poder ser exposto no stand dum vendedor, no exterior do pavilhão onde se disputaria o Mundial, tendo um pacote de 500 unidades sido vendidas em poucos noites. O livro “Hóquei em Patins” terá sido o primeiro publicado naquele formato e que faltava à Editora na sua colecção Desporto.
Pouco tempo depois, em finais de Agosto, fui contactado por elementos da Associação Desportiva de Oeiras, que me convidaram para treinar da equipa de seniores. Como tinha o espírito aberto para essa eventualidade, aceitei. Após formalização em reunião, liderada pelo presidente Álvaro Santos, fui posto ao par das limitações reais do Clube e, em posteriores conversas, das características da comunidade local com especial incidência nos atletas que passaria a orientar. Apesar de só ter estado neste clube seis meses, de Setembro a Fevereiro, o relacionamento com estes aprofundou-se, e o trato com o Presidente e os seus dirigentes e Seccionistas, primou sempre por marcante honestidade e respeito mútuo que senti ter perdurado, quando mais tarde visitava Oeiras, por outras razões e me cruzava com eles. Curiosamente, sempre que passava por lá, nunca deixava de ir à loja do Alves e dar uns dedos de conversa com ele, a respeito da modalidade e do seu filho que deu cartas nela.
Foi desta maneira que submergi em águas desconhecidas do hóquei em patins de Oeiras, uma vila pitoresca, cuja população mais tarde acabou por se habituar à minha passagem pela praça da Igreja, a caminho da estação. Nos primeiros dias, para não me desorientar, apanhava o comboio em Paço de Arcos, saía em Santo Amaro e descia, por entre as árvores, a ladeira que desemboca mesmo ao lado do Pavilhão. Até à hora do início do treino, confraternizava com dirigentes presentes e elementos da Secção de hóquei em patins ou com alguns adeptos que faziam questão em me oferecer uma bebida que sempre substituí por uma “bica”.
O período de treinos de pré-época decorreu com normalidade, os atletas foram submetidos a uma preparação rotineira que visava a recuperação das suas faculdades físicas e técnicas, perdidas durante o defeso e, simultaneamente, permitir-me uma avaliação dos seus talentos hoquistas de modo a poder constituir formações no futuro. Todos se dedicavam e se esforçavam, como é usual quando um novo treinador aparece em cena, dando o seu melhor e facilitando desse modo, os meus registos mentais e como a minha função era treinar os Seniores, a eles me dediquei exclusivamente.
O plantel era então constituído pelos guarda-redes Saraiva, ?, pelos defesas-médios José António Tavares Pereira, José Manuel B. Ventura, José Augusto Sapo e avançados Joaquim Fernando F. Carvalho, José António Garrido e Francisco José C. Salema.
Contudo, com a abertura da época, não deixei de observar alguns treinos de Juniores e respectivos jogos oficiais, tendo gravado na memória a actuação de um desses jovens que me impressionou imenso pelas qualidades que demonstrava, indiciadoras de uma estrela em formação. Mais tarde, ainda conversei com o treinador de Juniores para que o cedesse às Honras, o que não se concretizou por esse escalão ter ambições ao título, o que era compreensível. Eventualmente, esse prometedor hoquista foi para um clube do norte, jogar em Seniores, “estrangeirando-se” num ambiente novo, longe dos amigos e família, o que certamente limitou os seus impulsos de audácia que, a meu ver, eram a marca de uma futura estrela. E nem sei se o escalão dele ganhou o título.
De qualquer modo, isso deixou de me preocupar. Já com os treinos de pré-época adiantados, a Direcção Clube informou-me que repescara em 18 de Setembro, um atleta da casa que fora militar num grande da cidade. Era de facto um elemento não só muito conhecido e querido dos habitantes locais, como um reforço de nome. O problema foi que não jogara com frequência no seu último clube e apresentara-se visivelmente destreinado. Ora aqui é que o Diabo prega partidas.
Logo no Torneio de Abertura, num jogo contra a equipa do Belenenses, realizado em meados de Novembro, fui confrontado com um ambiente hostil por parte dos espectadores que clamavam por ver o “filho pródigo” dentro do campo. Esta foi a primeira situação de desagrado por que passei, em toda a minha carreira como treinador e, diga-se de passagem, também foi a última, felizmente. Pouco antes de findar o jogo, no local reservado aos técnicos, reagi bruscamente contra um indivíduo que tinha estado a incomodar-me, o que exacerbou mais os ânimos. Minutos depois vim a saber tratar-se de um familiar de um dos jogadores do plantel, que chorava no balneário e que tive de acalmar, afirmando-lhe que não sabia de quem se tratava e que se soubesse as coisas teriam sido bem diferentes.
Tinha dado o mergulho nas águas revoltas de Oeiras, não gelei mas bati com a cabeça numa rocha. Mas ao caminhar para o balneário, depois do incidente, intrigado com aqueles apupos todos, a cabeçada não fora tão forte que me impedisse de reparar, pelo canto dos olhos, que toda a Direcção se encontrava do outro lado do rinque, não tendo havido nenhum elemento que se aproximasse ao meu encontro. Resolvidas as coisas junto da equipa, desloquei-me seguidamente para o grupo de dirigentes que permanecia no mesmo local e, de modo directo e sem grandes dramas, pedi-lhes que me dissessem de que lado é que estavam, agradecendo-lhes que o fizessem dentro de 10 dias.
Voltei para casa e não mais compareci no Clube. Concentrei-me no manuscrito do meu livro esquecendo por completo o acontecimento. Para minha surpresa, recebi a visita de vários elementos da Direcção que me entregaram a carta que a seguir reproduzo em miniatura e transcrevo a parte essencial para melhor leitura e que disseram estar exposta em vários locais públicos, para conhecimento da população.
«COMUNICADO
Para conhecimento dos senhores Associados, comunica-se que a Direcção, em sua reunião do dia 10 do corrente mês, face aos lamentáveis incidentes verificados durante o jogo de hóquei em patins, categoria de honra, para o Torneio de Abertura da Associação de Patinagem de Lisboa, OEIRAS-BELENENSES, deliberou o seguinte:
1º. – Manifestar publicamente o seu mais veemente repúdio e condenação pelas lamentáveis atitudes assumidas, durante este jogo, por alguns dos seus associados, que, discordando das directrizes puramente técnicas que somente ao treinador cabe a responsabilidade, deram, mais uma vez, provas da sua falta de civismo e de total ausência de ética desportiva.
2º. – Igualmente manifestar o seu total apoio e confiança na orientação imprimida às equipas seniores de hóquei em patins, pelo treinador senhor FRANCISCO VELASCO, reveladora da sua capacidade para o exercício do cargo e que esta Direcção tem vindo a verificar ser de uma honestidade a toda a prova.
3º. – …
Oeiras, 14 de Dezembro de 1981
A DIRECÇÃO»
…
Li o seu conteúdo, fiquei visivelmente satisfeito por a Direcção ter tomado uma posição sobre o incidente, mas recordei-lhes que tinha sido claro quando lhes dera 10 dias para se manifestarem. Como ultrapassaram esse prazo, por não me considerar mais treinador da ADO, informei-os que já tinha assumido outro compromisso e que, portanto, teriam de arranjar outro técnico. Houve um certo desapontamento por parte dos meus interlocutores que se desfez, quando de seguida afirmei que continuaria a tomar conta da equipa até encontrarem um substituto. Estávamos em meados de Dezembro e fiquei até 22 de Fevereiro do 1982, quando à 10ª jornada do Nacional de I Divisão, a equipa se encontrava em 5º lugar, entre as 16 participantes.
Devo acrescentar, a bem da verdade, que nunca mais ocorreram objecções à minha condução da equipa, antes pelo contrário, a partir de então, como que por milagre, verificou-se uma maior empatia entre todos, talvez por se reconhecer o empenho, a seriedade e justeza das decisões do treinador. Senti-me sempre em casa, tal como hoje, quando lá vou. No fundo, acho que a Direcção não se apressara em encontrar quem me substituísse.
Neste ínterim, durante Dezembro, fui abordado por dirigentes de Angola, que me convidaram para preparar a sua Selecção para o Campeonato do Mundo que ia ser disputado em Barcelos. Senti-me livre para aceitar, informando de imediato os responsáveis do Clube, na pessoa do seu presidente Álvaro Santos a quem solicitei que o assunto não fosse tornado público pois não desejava criar alardes à volta desta novidade.
Assim sucedeu e em 23 de Fevereiro de 1982 embarcava para Luanda, abrindo portas a um futuro desconhecido que me permitiu dar conta de novos factores até então por mim jamais detectados ou enfrentados, mas que colidem dramaticamente com o trabalho dos responsáveis pela preparação e orientação das equipas: “As Agendas Pessoais”
Estes factores estiveram sempre presentes a partir deste momento, onde quer que actuasse como treinador, e serão revelados nas próximas peças, como um contributo de alerta para os que seguem esta carreira. Se as minhas reacções foram as mais adequadas ou autênticos actos de “suicídio” será matéria para cada um concluir.