AGENDAS PESSOAIS
Estas agendas não se revelam de imediato, vêm de modo sub-reptício, como neste caso particular da Selecção de Angola, inédito por envolver um grupo de indivíduos no seu seio, alguns com responsabilidades directivas, unidos por um objectivo comum, se bem que animados por interesses divergentes. Testaram o terreno primeiro, uns activamente, outros por omissão, sempre a minar o caminho. O resto do grupo caminhou atrás deles, distraidamente, com os sonhos e os pensamentos postos na Suiça e em Portugal.
Claro que o alvo visado, que era eu, como Seleccionador Nacional, detectava certos indícios dessas ofensivas e nunca deixei de reagir às mesmas, de modo frontal, doesse a quem doesse. Contudo, só à posteriori é que a enormidade das tramas tecidas pelas agendas fizeram sentido, daí que trago hoje à luz do dia, o que considero ser um autêntico manual completo da primeira de várias experiências nesta área, as quais, incrivelmente, sempre me perseguiram, a pontos de suspeitar que algo poderia estar errado com a minha actuação. Mas tendo reflectido profundamente sobre os acontecimentos da minha carreira de treinador, achei que não… e deixarei aos futuros interessados no fenómeno desportivo a seguinte pergunta: – Que fariam eles no meu lugar?
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O estágio no Huambo, com excepção do sobressalto logo nos primeiros dias, com as referências duma rádio desconhecida à Selecção Nacional, decorreu paulatinamente e sem incidentes, com todos elementos empenhados nos treinos, sempre a darem o seu melhor, para minha inteira satisfação. Todavia, as famigeradas agendas pessoais, a partir de agora referidas como esticões, começaram a tomar forma, a primeira, em 17 de Março, Rádio Nacional; a segunda, exigências dias antes de deixarmos Huambo; a terceira, em 30 de Março, insinuações; a quarta, em 1 de Abril, atitude insólita ao desembarcarmos no aeroporto de Luanda; a quinta, no dia 5 de Abril, comportamento bizarro no dia da partida para Lisboa. Passo a descrevê-las, com a ressalva que só 2 anos depois, em 1984, por notícias publicadas em Portugal, pude aperceber-me, com ajuda das minhas notas, da magnitude de toda a trama urdida:
Esticão em 17 de Março, Rádio Nacional – Programa desportivo. Transcrição, o mais na íntegra possível, de manuscrito feito chegar às minhas mãos, pelos amigos radialistas da Rádio Huambo, do conteúdo a que deu voz Arlindo Macedo, com ênfases a negrito normal e os meus esclarecimentos a negrito itálico:
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«Os casos de afastamentos de Mário Constantino, Jony Almeida e Augusto Magalhães, só passa despercebido para quem nunca percebeu de hóquei em patins, pensa a verde e branco, ou para quem põe e coloca os problemas pessoais acima dos interesses nacionais, os invocados critérios de selecção para quem jogou o ano inteiro nada têm a haver com as necessidades de facto de uma selecção nacional… tratar este problema de frente pode parecer ter-se começado a apontar as baterias para a selecção, querer uma equipa à vontade de uma imprensa e outros disparates que os depostos (sic?) quando postos de mãos soltas atiram para a frente dos ingénuos e convencem com falsos argumentos…
«…esta é uma opinião pessoal do mesmo modo que o Fr. V. (Francisco Velasco) tem a sua e os seus adjuntos as suas, para explicarem que três hoquistas que sempre mostraram valer para a selecção em qualquer situação são inapelávelmente afastados duma preparação para o Mundial… com as mesmas chances de recuperar que por exemplo Rui Santos, mas sem as mesmas hipóteses de esperar que Rui Santos como se não bastasse o paternalismo manifesto desde o início desta espécies de Selecção Nacional…
«…não ficou em Moçambique, mais preveligiado ele vai a Montreux e passeará no Rossio… Fran. V. (Francisco Velasco) não é culpado e a única fraqueza que se poderá atribuir ao técnico Português é estar rodeado de má fé… uma má fé manifesta pela própria atitude de esperar meses por um treinador e deixar a cargo dele uma convocação que poderia ter sido feita logo passando os dispensados de tal trato melhorando as perspectivas de selecção e sentido a leveza de hostilidade numa cabeça que se poderia então passar levantada…assim não… e na nossa opinião porém como casos destes não devem continuar insignificantes perante as autoridades desportivas impõe-se apurar responsabilidades…
«…a menos que F. V. (Francisco Velasco) queira como ponto final assumir individualmente a responsabilidade total do acto que em nossa opinião, uma vez mais a nossa, é de comunhão na glória ou no infortúnio de toda a equipa técnica incluindo o massagista para um maior consenso. Brincar às selecções já não é para este tempo. Proximamente tudo faremos para contrapor as opiniões dos interessados e os argumentos da Direcção Técnica da Selecção Nacional de Hockey para que tudo se esclareça em torno do livre critério de pôr e dispor daquilo que custa caro e é de todos nos custos… no amor-próprio e na honra.»
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Esta curiosa emissão, totalmente despropositada, surpreendeu-nos em Huambo, tendo o Colectivo da Selecção reunido de imediato para analisar o conteúdo da mesma. Um esclarecimento foi gravado com a presença do Director Técnico, Bastos de Abreu que seria entregue à Rádio Nacional e teria de ser reproduzido no mesmo programa, como direito de resposta, com a mesma projecção, a fim de rectificar as afirmações descabidas e minimizar os estragos causados. Caso isso não sucedesse, o Seleccionador Nacional jamais falaria para essa Rádio e, não falando para essa respeitável Instituição Angolana, não falaria para mais nenhuma, quer na Suiça, quer em Portugal.
O radialista, ao contrário do que afirma não parecer, não só “apontou as baterias” como disparou uma salva cheia dos tais “disparates” a que se refere e fê-lo impunemente por detrás da “sua opinião pessoal”… pois o sr. Francisco Velasco tem a “sua”… Ora este argumento não colhe pois o autor das atoardas tem “opinião” (que é de seu direito) mas não tem ou pretende não ter “conhecimento”. A diferença é que o Seleccionador Nacional tem “conhecimento” e pode emitir “opinião”, preferindo utilizar o primeiro que é mais importante do que perder-se em infinitas opiniões como as “suas”, dele, do homem da rádio.
A “espécie de Selecção Nacional” a que se refere, só me permite imaginar o que tenha sido, pois não a conheci. Agora o que posso garantir é que a Selecção Nacional que partiu para a Europa, nasceu com a minha presença.
A única coisa que o radialista acertou, como uma presciência notável, (mas quem mais poderia adivinhar?), é que “a única fraqueza que se poderá atribuir ao técnico Português é estar rodeado de má-fé”. Quanto ao “apurar responsabilidades” não sei de quem, pois as resultantes das minhas decisões foram todas argumentadas e exaradas em acta, produto de reuniões semanais e outras extraordinárias do Colectivo da Selecção. Finalmente, “brincar às selecções” talvez tenha sido o que todos andaram a fazer antes de eu lá chegar.
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Nas duas primeiras sessões no Huambo, a partir do dia 25 de Fevereiro, ao concluir que a maioria dos jogadores, eram manifestamente fracos e estando ao par da polémica relacionada com a não inclusão de Augusto Magalhães e Mário Teles, muito badalada na imprensa, decidi convocá-los na esperança de aumentar as opções existentes. No Jornal de Angola, de 2 de Março, Pires Ferreira publicou uma caixa sobre essa convocatória que tinha sido discutida e merecera a concordância do Colectivo.
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No dia 16 de Março, o Jornal de Angola, no seu Suplemento Desportivo, publica um artigo de Pires Ferreira, que acompanhou desde o princípio a “Operação Portugal 82” e que reconheço ter sido dum profissionalismo e seriedade a toda a prova. Pires Ferreira veio a Huambo ver o que se passava e produziu a seguinte peça, bem tratada, que encheu as páginas centrais do Suplemento a qual, como se pode ver pelas datas, precede as diatribes proferidas pelo longínquo radialista em Luanda que seguramente se baseou nela para emitir a sua “opinião” lamentavelmente destituída de “conhecimento”.
Um telefonema ao Seleccionador Nacional, ou aos próprios atletas que já tinham regressado à capital, bastaria para ser elucidado que os responsáveis técnicos não tinham dispensado nenhum deles.
E para fazer um pouco de história futura, foram eles que vieram ter comigo, afirmando que não aguentavam os treinos. Mas apesar da minha insistência para perseverarem nos esforços, reiteraram a decisão inabalável de se afastarem, por acharem que não recuperariam a forma.
Esta conversa não foi uma abordagem particular, foi testemunhada, como todas que diziam respeito à Selecção, e a mim só coube reproduzir para a imprensa o facto do afastamento sem empregar a palavra “desistiram“, menos abonatória para os atletas em causa. Quanto ao atleta Rui Santos, com um problema muscular, foi mantido no Huambo para observação médica e toda a assistência que pudéssemos proporcionar para efeitos de recuperação da lesão. Tão simples como isso. Finalmente, o afastamento de Jony Almeida por razões disciplinares nada tiveram a ver comigo. Este atleta teve a franqueza e humildade de me falar em Luanda e reconhecer que cometera um erro imperdoável.
Devo deixar registado que em todo o percurso desta selecção, o directo relacionamento entre o plantel e o seu Seleccionador Nacional foi sempre de respeito mútuo. Foi um prazer treiná-los, durante 35 dias, dada a sua entrega e total empenhamento nas sessões. Se alguém reagiu com dureza ou rispidez fui eu, duas vezes, uma durante uma sessão em Huambo e outra, depois de um jogo na Suiça, com se verá mais adiante.
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Entrevista de Pires Ferreira, com fotos de Pedro Salvador
«DOIS DIAS NO HUAMBO COM A SELECÇÃO DE HÓQUEI»
«A rapaziada tem correspondido às exigências do trabalho e eles reconhecem que hoje estão com um nível superior»
«Huambo. A cidade escolhida por todas as selecções para fazerem os seus estágios antes de uma competição internacional. O “Centro de trabalho dos nossos guerreiros do desporto”. As suas condições climatéricas, alimentares e de repouso favorecem qualquer tipo de preparação para qualquer prova. Huambo, “cidade-vida”, como dizem os seus habitantes.»
«Há aproximadamente quinze dias hospeda a selecção de hóquei em patins com via a “operação Portugal 82”, depois de uma “breve escala” em Montreux (Suiça) onde participará nas Taças das Nações. Huambo, o local onde os nossos hoquistas se apetrecham de todos os requisitos conducentes a uma patinagem veloz e hábil para a conquista do tão esperado lugar do grupo “A”. Barcelos é a meta. E esta selecção que tem sobre os ombros a nobre missão de representar o país pela primeira vez, num Campeonato do Mundo, como vai de saúde? Dois dias na “cidade vida” para sabermos como estão os nossos hoquistas. O que fizeram, o que falta fazer…»
«O trabalho que está a ser feito pela equipa técnica sensibilizou-nos. Físicamente a equipa está no ponto. Tecnicamente está a chegar lá. Tacticamente não sabemos como vai pois esta fase iniciou sábado e nos poucos treinos que assistimos não vimos mais que um sistema ensaiado…»
«Convidámos Francisco Velasco, o técnico da Selecção Nacional para nos fazer a “radiografia” do estágio até esta parte:
« – Quando cheguei conversei com vários directores e disse-lhes que isto tudo só começa a ficar interessante quando nos começarmos a conhecer uns aos outros. Claro que é impossível fazer-se isso de um dia para o ouro. Eu costumo utilizar a a seguinte medida: logo que eu saiba o nome de todos nessa altura eles também já me conhecem.»
«Como se diz na gíria popular “eu não vim vender a banha do porco”. Trago a experiência de, pelo menos trinta anos da modalidade, compactada num metodologia de treinos que por si própria transparece uma dinâmica que se reflecte imediatamente na evolução do atleta. Essa metodologia adapta-se às circunstâncias. Como neste caso, para trabalhos de uma selecção, possui um ritmo diferente do que se fosse aplicado a um clube em termos de uma época.»
«Não se trata de fazer essencialmente jogadores excepcionais mas sim apurar-se primeiro as capacidades físicas e técnicas dos atletas a um nível que eu penso que é aquele máximo que eles podem conseguir na circunstância. A partir daí a metodologia busca a formação de um grupo e para se atingir esse objectivo são introduzidas e treinadas as soluções dos problemas que se vão apresentar a esse grupo em competição. Levou-me exactamente cinco ou seis dias para transmitir esses princípios aos atletas e sentir que eles, pelo menos reconhecem, à superfície, a validez desses mesmos princípios».
«E como é que os jogadores se estão a adaptar a essa metodologia que você está a implantar no seio da equipa?»
« – A rapaziada é óptima. Tem correspondido e esforçando-se às exigências desse trabalho que eles reconhecem que nem é nem vai ser nenhum passeio. Encontrei-os com um certo nível e estão hoje com um nível muito superior. Após as sessões que temos efectuado, que nesta fase é de preparação individual, está-se a tornar evidente não só para mim como para os próprios atletas que algo mudou e já não são os mesmos.»
«Precisamente que espécie de trabalho foi realizado na primeira fase da sua preparação?»
« – A primeira fase do meu programa que ainda estamos a percorrer (esta entrevista foi feita no dia 11) é de preparação técnica individual, isto é, melhoria acelerada da patinagem, do domínio de bola, passes, stikadas e dribles, que ocorrem simultaneamente com a preparação dos três guarda-redes. É um trabalho de persistência que de maneira geral não é levado a sério pelos atletas em todos os clubes do mundo. Estamos a entrar neste momento na fase em esses requisitos atingiram um padrão razoável que vai permitir que de ora em diante entremos no campo da tática.»
« – É minha intenção neste período mentalizar o grupo para os diversos adversários que vão enfrentar, que, em linhas gerais, vai separar o grupo dos mais fortes dos mais fracos para os quais o comportamento da nossa equipa terá de variar e apresentar as soluções adequadas.
« – A terceira fase que vai esclarecer na totalidade o que são os nossos atletas e que resposta irão dar, situa-se em Montreux.
« – Aí, o impacto psíquico que uma competição dessa natureza sempre trás vai definir o atleta em termos reais e concretos. Como deve calcular, e isso sucede até aos jogadores que foram uma centena de vezes internacionais, as características nervosas de um atleta, revela-se com os indicadores que essa prova proporcionará. Poderemos então, no período em que permanecermos em Portugal, de 13 de Abril a 1 de Maio, corrigir e se necessário for, intensificar quaisquer fraquezas reveladas na Taça das Nações. Resumindo, através dessas fases todas, calculo que a selecção nacional de Angola se apresentará no Mundial com uma certa força que só os resultados depois poderão medi-la. Em termos de preparação levamos uma vantagem em relação a muitos países. Por outro lado, esses países tem sobre nós um ponto que lhes é favorável que é estarem habituados a competições dessa natureza.»
«Como é que os jogadores têm correspondido tacticamente?»
« – Os atletas mostram reacções normais de quem nunca pensou ou jogou em termos tácticos. O hábito de jogar sem pensar nos problemas, também não desaparece de um dia para o outro. Eles cumprem, tem procurado cumprir e quando põem o pé na argola, salto-lhes logo em cima e muito realisticamente aviso-os que jogar sem pensar em golos na baliza contrária, não dá. Eles são muito receptivos e como diz o provérbio “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” e durante as minhas 4 horas de sessão ouvem-me sempre acerca disso.»
«O tempo perdido…»
« – O tempo perdido está automaticamente recuperado na medida em que a frequência de treinos teria sido muito menor se tivéssemos começado mais cedo.»^
«A equipa está a ganhar maturidade suficiente para encarar com optimismo estas duas competições?»
« – A maturidade não se adquire nos treinos ou com ensino teórico, mesmo que correcto, das situações que se enfrentam. A maturidade que você põe em causa vai aparecer quando eles acabarem as duas competições. Isto porque só a competição permanente a este nível é que pode trazer a maturidade tão desejada. Quaisquer que sejam os resultados dessas duas competições (a primeira para mim está «integrada numa fase preparatória da equipa) só pode ter um resultado positivo, classificar-nos-á no lugar que merecermos.»
«Isso permitir-nos-á recolher ensinamentos em todos os escalões não só dos que se verificam dentro do campo, como os da condução de grupos nacionais. Isso vai dar-nos capacidade de olharmos para trás, para o tipo de preparação que se verificou, se foi correcta ou não e fazer que se filtrem as coisas boas que guardaremos para experiências futuras do mesmo tipo e até em qualquer outra modalidade.»
«De qualquer forma com a nossa participação em Montreux, a conquista de um lugar na série “A” fica mais próxima…»
« – Em relação à Taça das Nações, a passagem por esta competição é, concerteza, um passo em frente. Recordemos a “primadona” na sua estreia toda nervosa, estérica e pensemos na nossa equipa. Não estéricos porque isso só acontece com as “primadonas” mas sim nervosos o que é natural em face da responsabilidade que assumiram em representar o País e mandemos-lhe uma vibração de apoio. Para mim penso que essa prova vai descontrair o grupo em relação ao nosso objectivo principal que é o “Mundial”…»
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Esticão – exigências dias antes – Os atletas, subitamente em grupo, (agenda pessoal a funcionar) querem ir mais cedo para Luanda a fim de tratarem do aprovisionamento de comida para as suas famílias.
O capitão da equipa, Cândido Teles, apresenta ao Colectivo as exigências que os atletas lhe tinham posto. Após uma análise do problema, lembrando as dificuldades existentes em se conseguir produtos alimentares na capital, foi aprovada a seguinte sugestão, feita por mim, de boa-fé: – Os atletas preparavam uma lista individual dos produtos que pretendiam, entregavam-na ao capitão e o Colectivo encarregar-se-ia de obtê-los e transportá-los no avião. Ninguém falou mais no assunto e partimos no dia programado.
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Esticão em 30 de Março – Insinuações – O atleta Carlos Fragata, à mesa com pessoas estranhas à Selecção, insinuou que eu era um racista, reaccionário, etc. Membros do Partido presentes, indignados, porque me conheciam de conversas travadas no Hotel, contaram-me este tipo de comportamento.
Por ter sido a pessoa atingida, passei este assunto ao Director Técnico a fim de tomar a decisão que o Colectivo bem entendesse. Como parte interessada não queria envolver-me no desfecho. Não houve tempo para interpelar o jogador, pois o dia seguinte foi muito atribulado por anteceder o dia de regresso a Luanda.
Este acontecimento resultou quando numa sessão interpelei o Damásio Jr, pelo repetido hábito de cuspir na pista, onde quer que patinasse. Fui de facto duro para com este jovem, que além de ser uma criatura pura, adorável e simpática, era dos mais empenhados nos treinos e sempre uma alegria fora deles. Proferi mais ou menos as seguintes palavras: – Vais cuspir assim na Suiça e em Lisboa?… Queres que lá digam que os pretos são selvagens?… Já viste que estarão a observar-nos à espera de coisas desse tipo?
Sou um africanista que nasceu por aquelas bandas, que brincou e brigou com eles tantas vezes, em criança, em que era insultado com um branco de merda que eu replicava com preto manparra… acabando tudo em harmonia. Preto e Branco são antónimos, que sempre fizeram parte da linguagem vigente em África, a forma usual de distinguir as raças. Nunca empreguei a palavra “negro“, pois sempre a associei ao “nigger” um significado insultuoso, típico dos asquerosos regimes racistas.
Lembro-me do companheiro moçambicano de trabalho, Jamal Aziz que me observava deitado no convés da lancha, a procurar bronzear-me e ele dizer-me com certa ironia e graça: – Nós, os pretos, a querermos ser brancos e vocês a queimarem-se para se tornarem pretos! Gargalhada geral!
Os termos empregues na minha admoestação a Damásio Jr. foram posteriormente desvirtuados do seu contexto, por razões da hoje comprovada agenda pessoal do atleta Fragata.
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Esticão em 1 de Abril – atitude insólita – De regresso a Luanda, à porta do Aeroporto, vejo o mesmo atleta Carlos Fragata abandonar o grupo e entrar num carro estacionado defronte, do lado do condutor. De imediato chamei a atenção do Director Técnico, Bastos de Abreu, que se apressou na direcção da viatura, regressando de braços abertos, desalentado, pois o atleta dissera-lhe que tinha de tratar de assuntos pessoais e foi.
Em termos de infracção disciplinar, este comportamento era totalmente inaceitável e ali mesmo, no aeroporto, com o Colectivo reunido, foi Carlos Fragata excluído (com muita pena minha pois era na verdade um elemento importante com quem contava) da Selecção e proibido de entrar no Centro Desportivo, onde passaríamos os próximos dias. Nos dias 3 e 4, realizámos os jogos de despedida programados. Durante o primeiro jogo, fui abordado por elementos da Rádio Nacional que me queriam entrevistar, tendo mantido a minha posição que não falaria a não ser que pusessem no ar a minha resposta ao Arlindo Macedo. Eventualmente, os meus esclarecimentos foram transmitidos no programa desportivo da tarde de Domingo, mesmo à justa.
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Esticão de 5 de Abril, (abortado) – comportamento bizarro – Neste dia de partida para a Europa, ao apresentarmos as nossas despedidas na Secretaria de Estado dos Desportos, acompanhado pelos dois Vice-Presidentes da Federação Angolana, Rui Teixeira e Joaquim Manuel de Sousa Reis, chamei a atenção para o facto de que me empenhara durante os primeiros 3 meses do meu contrato e que ainda não tinha recebido os respectivos vencimentos.
A surpresa, não me recordo se do Secretário de Estado ou do Director Nacional foi tal, que não se coibiu de questionar os dirigentes, na minha presença, se não tinham naquele dia levantado 9 mil dólares. Responderam que sim e perguntados onde estava esse dinheiro, um deles foi buscar uma maleta do tipo James Bond, na sala vizinha. Quando regressou ouviu uma curta e decisiva ordem – Entregue ao sr. Francisco Velasco!
Na altura nada de estranho me passou pela cabeça, dado que a minha experiência como cooperante na República Popular de Moçambique, já tinha revelado a grande dificuldade e complicações relacionadas com obtenção de cambiais para transferências. Mais tarde porém tudo se encaixou numa agenda trapalhona mas destrutiva, conforme se poderá seguir na terceira parte desta minha narrativa.
Segue-se parte 3