Milionário durante uns meses…
Quando deixei a África do Sul, ao fim de 12 anos, tenho acompanhado o período mais negro da história desse País, desde o assassinato do Dr. Hendrik Verwoerd, pai da execrável política do “apartheid”, à aplicação implacável da sua política de pelo 1º Ministro John Vorster que tanto sofrimento e miséria provocou ao povo africano, à semelhança do que se verifica hoje na martirizada Palestina. Testemunhei o culminar dos grandes levantamentos do Soweto e a repressão violenta que se seguiu. Regressar a Maputo foi como voltar a respirar ar puro.
Apesar das imensas dificuldades na obtenção de géneros alimentícios e outros, de consumo dito quotidiano, a atmosfera na cidade era de segurança e tranquilidade. Nunca vi um guerrilheiro de Kalashnikov na mão. Os únicos militares que dei conta, impecavelmente fardados, encontravam-se junto das portas das residências oficiais consulares e alguns ministérios, o que era normal.
Em contrapartida, na África do Sul, estava sempre de olho nas minhas crianças e, se porventura me deslocava para o serviço ou fosse passear, nunca me esquecia de trazer a “artilharia” aconchegada ao sovaco, por razões exclusivas da alta criminalidade que por lá grassava. Em Maputo, os meus filhos percorriam a cidade, na companhia de amigos e amigas vizinhas, da mesma idade, deslocando-se aos “gelados” na antiga Massano Amorim, regressando alegremente, já noite entrada.
Tenho de recuar e citar um episódio relevante para esta história. Dias antes de deixar Johannesburg, após um dúzia de anos de residência sem qualquer problema, trabalhava eu ao serviço de um arquitecto afrikanner, Jan Bosch & Partners, que me estimava bastante apesar das minhas ídiossincracias. Aceitou-as sempre, com o seu sorriso simpático, mesmo quando discutia acaloradamente com o seu sócio e arquitecto, quando não concordava com certas especificações de tonalidades raciais.
Um exemplo. Uma estação de serviço no interior rural, em que as áreas de serviço destinadas aos viajantes, i. e., casas de banho e lavatórios, eram exactamente espelhadas, nos cantos opostos do edifício, numa filosofia de “igual mas separado”. Depois de deslindar o esquiço em perspectiva que o arquitecto vendera ao cliente, executei as peças desenhadas para construção. Vieram para trás com instruções para remover um termo acumulador que colocara nos não europeus.
Chamei a atenção do arquitecto responsável que se havia um do outro lado, tínhamos de colocar outro no lado oposto. Insistiu que não estava previsto no caderno de estimativas e que tinha de raspá-lo. Retorqui-lhe calmamente que raspasse ele, porque eu não o faria. Aí estalou uma bronca que só foi resolvida por intervenção do patrão que concordou comigo e o aquecedor foi colocado.
Nesta mesma empresa, foi-me pedido um trabalho urgente. Não querendo remover o acetato em que estava a trabalhar, informei os colegas que iria fazê-lo na outra ala, numa sala onde trabalhavam vários desenhadores e um arquitecto chinês. Mal entrei, dei com a figura “sinistra do apartheid”, um biombo que separava esse colega dos demais, para estar de acordo com as leis. Não hesitei, fui cumprimentá-lo, pois cruzávamo-nos por vezes à entrada ou saída. Retirei o biombo da frente dele que me olhava surpreendido, e fui arrumá-lo por detrás da porta duma saleta onde se processavam as cópias Ozalid. Comprimi-o, entortando a armadura de alumínio de tal modo que passou a ferro-velho. Regressei, virei o estirador de frente para o colega chinês:
– Francis, vais ter de me aturar um par de dias! – Ele simplesmente sorriu.
Mas as coisas não ficaram por aqui. Entre as duas alas, posicionavam-se as retretes com a típica tabuleta aparafusada: “Europeans only”. – Pensei no Francis, a magicar onde diabo ele se safava, meti as unhas e saquei a placa que fui entregar ao patrão. Este olhou-me para com ar resignado. – Caíu?… – Não, arranquei-a! Como ficou perplexo, esclareci-o: – Nasci na Índia, será que tenho de ir lá fora, aliviar-me junto duma árvore? Como sempre, Jan Bosch soltou uma gargalhada, meteu a tabuleta numa gaveta da secretária e nunca foi reposta, enquanto andei por lá.
Era um País de loucos. No bairro residencial onde morava, Emmarentia, populado quase na totalidade por famílias judias, em segurança por detrás de altas cercas metálicas e defendidas por enormes cães da Alsácia e Dobbermans, o meu muro tinha meio metro de altura e os portões de ferro forjado permaneciam sempre abertos sob a vigilância de Lucky, o meu pequeno e valente Fox-Terrier.
Quando soube que as minhas duas empregadas acordavam às 4 horas da manhã e chegavam a casa pelas 9/10 horas da noite, deixando os filhos pequenos, fazendo um percurso inacreditável, a pé, de autocarro, outra vez a pé, em filas longas e comboios atulhados de trabalhadores, não me contive. Disse-lhes para virem alojar-se com os filhos, no edifício anexo, com dois grandes quartos e sanitários, situados por detrás da garagem. Como seria de prever, logo de seguida vieram os maridos e aos Domingos, confraternizávamos, por vezes, à sombra de uma frondosa árvore no fundo do quintal, com todos a comerem “mealie-pap“, gostosamente preparado pelas empregadas, com suplementos de refrescos e doçuras que iam da nossa cozinha.
Violei uma das leis básicas do “apartheid”, o “Group Areas”, que impedia as raças de viverem juntas. Diga-se de passagem, que em 9 anos deste estado de coisas, nenhum vizinho reclamou nem chamou a polícia. Moral da história: – quase todas as moradias em nosso redor foram assaltadas e pilhadas. A nossa ficou incólume, bem como eu, que nunca tive problemas com as autoridades.
Todavia, dias antes de partir para Moçambique, estando no meu estirador, o meu patrão Jan Bosch, veio ter comigo dizendo que estavam dois cavalheiros na recepção que queriam falar comigo, se havia algum problema. Respondi-lhe que não e fui ter com os dois “pidescos” da terra que olharam para mim sem muito para dizer, como se estivessem a medir-me.
Eram elementos da Segurança Interna, ex-CID, agora Bureau of Secret Services, B.O.S.S., um acrónimo de “patrão”, mesmo a calhar para o regime racista. A conversa testemunhada pela nossa recepcionista, irritou-me, pois vinham inquirir se ia para o Maputo, o que parecia não ser da conta deles. Pedi à recepcionista que me desse uma folha de papel onde escrevi o meu endereço que lhes entreguei, lembrando-lhes que aquele era o meu local de trabalho e que, se quisessem conversar, aparecessem em minha casa.
Isso sucedeu uma ou duas semanas antes de mover o meu mobiliário para dentro do contentor. Desta vez, recebi a visita dum capitão da B.O.S.S., na presença de minha esposa. Ofereci-lhe um chá que aceitou, sentámo-nos e fez-me umas poucas de perguntas que nada tinham a ver comigo. Elucidado, vinte minutos depois, levantou-se e parou defronte duma enorme fotografia aérea de Lourenço Marques, tirada pelo Carlos Alberto, fotógrafo do Notícias, de 2,0 por 1,5 metros, colada na parede. Era a minha janela aberta para a cidade que me viu crescer. Apontou para a Praça Mouzinho de Albuquerque e um ponto ao lado dizendo: – Eu estava aqui quando derrubaram a Estátua! Essa foto, ainda hoje se encontra enrolada, a um canto, atrás de mim. Quando saía, virou-se e avançou subtilmente com uma sugestão inesperada que mereceu de minha parte, a seguinte resposta seca: – Mande para lá os seus profissionais!
…
Perguntar-se-á, o que tem isto a ver com o milionário? Em parte, não muito, talvez sirva para revelar a pessoa, as suas convicções e maneira de ser que, bem ou mal, moldaram o Treinador, na sua intransigência em questões de princípios.
– Ser honesto nas intenções – rigoroso nas decisões – frontal nas discussões e, – acima de tudo… nunca levar desaforos para casa.
Ora bem, uns meses depois, recebo pelos Correios, o extracto mensal da minha conta no Chase Manhattam Bank, de Nova York que a seguir reproduzo.
As campainhas de alarme soaram, quando dei conta deste depósito efectuado na minha conta. Imediatamente expliquei a Paulo Garção, um vizinho amigo que trabalhava na Direcção do Banco de Moçambique e que me acompanhou para eu expor o assunto ao nível mais elevado daquela Instituição. Não foi preciso, ele próprio, tendo levado a Nota de Crédito, regressou com a resposta que, para meu bem, oxalá não dessem conta do erro.
Tempos depois, uma força especial sul-africana atacou as residências de elementos do ANC matando alguns e ao escaparem-se ainda tiveram tempo de assassinar um concidadão português que regressava na sua viatura, depois de um dia de trabalho.
Pois bem, como Técnico de Hidrografia, fora-me emitido um passe para entrar e sair das instalações da Capitania do Porto de Maputo, autorizando a deslocar-me por zonas de um certo modo consideradas estratégicas. Na Catembe, já tinha sido abordado por militares, responsáveis pela vigilância. Na zona do Cais de Petróleos da Matola, trabalhei vários dias, fazendo circuitos de nivelamento por entre os enormes depósitos de Gasolina a fim de poder recuperar e cravar uma marca de nível no Cais, para controlo do Marégrafo lá existente.
Suponhamos que algum funcionário mais zeloso dos Correios, tivesse aberto aleatoriamente o envelope contendo o meu extracto com um depósito de 3,5 milhões de dólares e registasse esse facto!
Suponhamos agora que o grupo de atacantes sul-africano tivesse entrado com o objectivo sabotar os depósitos de gasolina provocando uma catástrofe de enormes proporções! – Estava feito, pois tinha vindo do País inimigo, onde vivera uma década, estivera a trabalhar no local, tinha um depósito milionário recente! Certamente que iria ter muitas dificuldades em explicar o que quer que fosse.
Prosseguindo, logo a seguir ao crédito de 3,5 milhões de dólares, veio uma nota de débito no valor de 60 e tal mil dólares, o que me obrigou a encetar uma correspondência agreste com o Banco de Nova York o qual, durante três meses, deixara de me enviar os extractos mensais. Acho que, possivelmente, se tratou de uma lavagem de dinheiro, utilizando uma conta nos confins do mundo, que mais tarde acabariam por rectificar atabalhoadamente, sem nenhum esclarecimento. Felizmente que não tocaram nas minhas parcas economias!
Posteriormente, de regresso dos Jogos Mundiais, na Califórnia, acompanhando a nossa Selecção Nacional de Hóquei em Patins, aproveitei o dia que lá passámos, para ir ao Chase Manhattam Bank sacar o saldo, encerrando a conta definitivamente.
Um banco que me faz Milionário, com os imprevisíveis riscos acoplados e depois me remete a um estatuto muito mais terreno, não merece a minha confiança, penso eu de que…
Amigo Velasco. Desculpe trata-lo assim, mas alem de ser um Herói da minha juventude, não podia deixar de lhe mandar um abraço, pois conheço-o desde a minha adolescência, visto o meu pai trabalhar na Divisão de Estudos do CFM e eu ia lá muitas vezes. Pode ser que não se lembre , mas foi o Senhor que me ensinou a andar de patins a pedido do meu Pai.Foi um prazer ao navegar na net ter encontrado o seu blog e está é a 2ª vez que tento mandar-lhe esta msg. mas tenho a impressão que a primeira não ” entrou ” pois parece que era necessário um plugin e não pegou! Mas aqui vai uma nova tentativa.
Caro António Carlos
Foram inúmeros os meus colegas da Divisão de Estudos dos CFM. O seu Pai era um deles e gostaria de reconhecê-lo na foto que lhe enviarei para a sua caixa de correio. Entretanto, na categoria O Carrossel, se for à página 1958 XIII Campeonato do Mundo – Rescaldos, a primeira fotografia marca um almoço em que a Divisão, me honrou com uma homenagem pelo primeiro título Mundial que ajudei a conquistar. Basta clicar sobre a foto que ela aumenta e veja se descobre o seu Pai e indique-me, caso ele tenha comparecido. Dei-me com todos e infelizmente os nomes e as faces já não colam. Velhice…
Um abraço