Ambientação…
Deixar África de vez, levando comigo a esposa e o filho de nove anos, para viver num cenário completamente diferente, sem saber o que o futuro nos reservaria, foi uma preocupação que me acompanhou durante toda a viagem aérea. Observava pela janela, a imensidão do continente africano que deslizava por baixo de mim, deixando para trás as terras pisadas durante toda a minha vida. Moçambique, Angola, Zimbabwe, África do Sul, Suazilândia, Lesotho, Transkei, Ciskei, Bophuthatswana, Vendaland, Kwazulu, tudo nomes dum imaginário impossível de me libertar.
Contudo, meditando enquanto o voo decorria, pois nunca consegui dormir naqueles assentos estreitos, decidira que Lisboa seria a minha nova “terra”. Já a tinha escolhido para local da minha Festa de Despedida do hóquei em patins, pela simples razão que foi nela que vivi durante mais de cinco anos, temporariamente claro, aquando das convocações para as provas em que a Selecção Nacional participava. Uma cidade que sempre me encantou e acarinhou e que ainda hoje acho maravilhosa.
Com essa ideia na mente, mais nada me ocorria. Em face das circunstâncias físicas diminuídas em que me encontrava, não fazia a menor ideia de como ganhar a vida dali em diante. Questões práticas teriam de ser resolvidas com relevo para a necessidade prioritária de aprender a escrever com a mão esquerda. Profissionalmente, dados os meus 45 anos de idade, numa época de dificuldades económicas que Portugal atravessava, previa encontrar grandes dificuldades pelo caminho. A pensar neste problema, ocorreu-me uma alternativa: – dedicar-me ao desporto, como treinador de hóquei em patins, uma área em que me sentia bastante seguro e que parecia ser a solução mais lógica e prática. E foi ancorado a essa ideia que as minhas sérias preocupações se desanuviaram, desembarcando confiante e determinado.
Os jornais “A Bola”, o “Record”, “A Capital” e o “Gazeta dos Desportos”, e outros, por esta altura, enchiam páginas a dar cobertura ao hóquei em patins, focando os I Jogos Mundiais que iam realizar-se nos Estados Unidos, praticamente 10 dias depois de ter chegado a Lisboa.

Os meus familiares relaxam, em Illinois. Da esq. minha sobrinha Tracey, minha esposa Vivienne abraçada ao filho Cláudio e afastado o sobrinho Mattew.
Era a oportunidade de pôr-me a par da evolução da modalidade, a nível internacional, uma espécie de investimento a prazo e não hesitei. Decidi acompanhar a Selecção Nacional e, em simultâneo, proporcionar aos meus uma ida a Chicago, a fim de passarem o período de minha ausência, junto de familiares há muito ansiosos por os ver.
Consequentemente, para não deslocar-me sozinho, integrei-me no grupo que formava a Selecção Nacional, liderada por Júlio Rendeiro e António Livramento, em cujo seio fui bem recebido e posteriormente tratado, num ambiente de franca camaradagem peculiar das nossas representações. Reatar o trato com antigos dirigentes e companheiros, trocar impressões com jornalistas e acompanhantes e, sobretudo, conhecer os atletas seleccionados, e as suas performances, foi altamente instrutivo e gratificante.
«Deslocar-se-ão os seguintes elementos: – Rui Santa Bárbara (chefe de comitiva), – Serrado Silva (coordenador), – Júlio Rendeiro e António Livramento (seleccionadores), – Dr. Maia Ferreira (médico), – Lúcio Moreira (massagista), – Filipe Hortado (mecânico) e os jogadores – Ramalhete (Benfica) e Fernandes (Sporting), guarda-redes; Fernando Pereira (Benfica), Vítor Rosado (Sporting), José Carlos (Benfica) e Cristiano (defesas e médios) e Vítor Hugo e Vítor Bruno (F. C. Porto), Piruças (Benfica) e Fernando Gomes da Costa (Juventude de Viana), avançados.»
Acompanham ainda a equipa José Castel-Branco e Hub Teixeira, na qualidade de presidente e secretário do Comité Internacional de Rinque Hóquei; – Fernando Pereira e Francisco Velasco, estes últimos como observadores e a expensas suas.
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Santa Clara com o seu clima extraordinário e uma urbanização espraiada e rasteira, onde o segundo andar não existia, pelo menos que me lembre, num profundo contraste com a cidade vizinha de S. Francisco, albergou a Aldeia de uma espécie de IIª Divisão dos Jogos Olímpicos, que procurava dar visibilidade a desportos interessados em candidatarem-se aos mesmos.
Fiquei deslumbrado não só com os dormitórios e refeitórios da Universidade onde nos instalaram, como pelo nível de organização geral onde todos eram meticulosamente espartilhados. Os pavilhões insufláveis, climatizados, agrupados como cogumelos, revelavam os avanços tecnológicos tão típicos daquele País, bem evidenciados pelas estruturas leves de cobertura, abauladas e transparentes. O interior, com fiadas de assentos confortáveis circundando a arena, ofereciam uma visão panorâmica que permitia seguir seis combates em simultâneo, sobre os tapetes circulares dispostos ao longo da pista. Foi num destes pavilhões que acompanhei as eliminatórias das Artes Marciais, Taekwondo, Karaté, Jujutsu e Judo, modalidades que sempre gostei de assistir, até me exultar com a vitória inesperada e extraordinária de um atleta Espanhol, o que muito me surpreendeu, por deixar para trás competidores Japoneses, Chineses e Americanos de alto gabarito.
Ao contrário do que esperava, fiquei desapontado quanto nos deslocámos ao pavilhão de Patinagem, moderníssimo, que mais parecia uma discoteca, com um tapete espraiado desde a entrada até às bordas da pista, um piso sintético e brilhante, a imitar os de gelo e um teto baixo, pontilhado de pontos de luz. Construído para um negócio de patinagem, quem entrasse pagava um ou dois dólares e era carrilado para um balcão onde, compulsivamente largava mais um ou dois dólares para adquirir uma coca-cola, um hot-dog ou um pacote de batatas. Iria depois sentar-se e apreciar as dezenas de pessoas, crianças e mais idosos, que rolavam às voltas sobre a pista, mudando de sentido, ao som dos apitos de um ou outro monitor. Se a intenção era patinar, haveria então que largar mais um ou dois dólares para alugar um par de patins, por tempo determinado.
Nitidamente um “business”! Intuí imediatamente e confirmei-o posteriormente que o proprietário só disponibilizara o seu pavilhão para a semana da competição, a troco duns bons milhares de dólares. Não acreditei que se tratasse de um centro de Hóquei em Patins, pois não conseguia ver o seu dono desperdiçar horas de uso do pavilhão para ter 10 atletas a competir quando poderia ter centenas em sessões contínuas. Todavia, percorrer o seu interior bem mobilado, com montras tipo museu, expondo literatura, patins de madeira antigos, autênticas relíquias, e diverso equipamento moderno, e acabar numa sala para fumadores, com extractores de fumo poderosos, recheada de poltronas convidativas e cinzeiro laterais de pé alto, foi uma descoberta instrutiva. Recordo que as tabelas e bancadas foram montadas e desmontadas diariamente por uma equipa de trabalhadores, vestidos como mandam a regras, de capacete de protecção, cintos largos donde pendiam todo o tipo de ferramentas. Actuavam com uma rapidez impressionante, poucas horas antes do início dos jogos.
Mais do que isso, fui informado pelos jogadores americanos com quem troquei impressões que não existiam quadros competitivos semelhantes aos que são do nosso conhecimento e tradição. Fiquei a saber que se reuniam uma vez por ano em determinado pavilhão onde convergiam 30 a 40 equipas vindas de todos os lados, resolvendo o campeonato em três dias, jogando sem parar, 24 horas atrás de vinte e quatro horas. (Acho que as coisas hoje, são totalmente diferentes, mais organizadas, a avaliar pelos sites americanos que visito)
A mitologia em voga, que aí vem os Americanos demolir-nos e arrastar-nos para os Jogos Olímpicos, esvaiu-se da minha mente e remeti essa probabilidade para as Calendas Gregas. Contudo, o que observei nesses I Jogos Mundiais, foi que os Estados Unidos possuíam um lote de excelentes jogadores, se bem que demasiado “naif”, que até poderiam ter ganho esta competição. (Mais tarde voltei a vê-los em acção, no Campeonato do Mundo de 1984 realizado em Novara, Itália, no jogo de abertura, quando derrotaram merecidamente a Espanha, para surpresa de todos).
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O que mais me chamou a atenção, neste meu primeiro contacto directo com o Hóquei em Patins nacional, foi a extensa cobertura dada pelos jornais. Em Moçambique, guardei, entre outros, o jornal “A Bola”, de 9 a 18 de Fevereiro que dava grande destaque à Taça de Portugal, ganha pelo Benfica ao Porto por 5 a 3. Além de mostrarem possuir um naipe dedicado de jornalistas a acompanhar a modalidade, os quais, diga-se de passagem, sempre primaram por grande seriedade, não poupando espaço para promover o nosso desporto, com entrevistas encabeçadas por títulos enormes, fotos dos protagonistas e as suas afirmações bombásticas. Tenho a meu lado um artigo de oito colunas, encabeçado por um corpo de letra de 2 cms, que vai duma página ao meio da outra!
Ficou-me o sabor amargo que os responsáveis, do alto da cátedra, emanavam um discurso erudito que não colava bem às realidades no terreno. Talvez os causadores fossem o povo ansioso, animado por expectativas elevadas e os dirigentes que o alimentavam com narrativas esotéricas. Naturalmente que era dever profissional dos jornalistas, tantas vezes suspeitosos, de disseminá-las pelos jornais.
«COMISSÃO TÉCNICA DO GABINETE DE ALTA COMPETIÇÃO!»
«Temos de teorizar o Hóquei em Patins… só temos treinadores de 4º grau!»
Estive sempre ciente que uma Teoria Geral requer conhecimentos vastíssimos em diversas áreas específicas do Desporto, fora do alcance de uma só pessoa, contudo, acredito que eu, bem ou mal, já tinha teorizado a prática de hóquei em patins no terreno, 20 anos antes de 1981 e 30 anos depois desta data ainda estamos a fazê-lo!
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Transcrevo partes relevantes da entrevista:
– «Recém chegado de Moçambique… quis ver, com os seus próprios olhos, como vai, em 1981, o hóquei em patins a nível mundial. Ele viu todos os jogos, guardou para si os comentários e foi só durante a viagem de regresso que nos forneceu algumas pistas das conclusões a que terá chegado.
– Em primeiro lugar gostaria que sublinhasse o facto de me ter sido particularmente grato o fazer parte desta comitiva… A todos quero agradecer as atenções de que fui alvo.
– Que tal o hóquei que viu praticar nos Estados Unidos?
– Vi bom hóquei… tecnicamente muitas selecções evoluíram, patina-se muito bem e pode-se dizer que já não há ingenuidade nenhuma, pelo menos nas selecções que estiveram presentes…
– As tácticas…
– Pareceram-me essencialmente defensivas; o que me fez chegar à conclusão de que os técnicos actuais não descobriram, ainda, o esquema de jogo que anulasse esse jogo puramente defensivo. Senti que há, actualmente, pouca imaginação para anular as tácticas defensivas da maioria das selecções. E tem de haver soluções para abrir o quadrado… Os técnicos actuais têm de ser mais estudiosos no aspecto de forçar o golo na baliza adversária.
– Qual o jogador que mais o impressionou neste Jogos Mundiais?
– … foi o italiano Marzella; reconheço que é indisciplinado, talvez quesilento… Depois, na segurança, no auxílio, na situação de situações delicadas, a nossa defesa: Ramalhete continua a ser grande e Fernando Pereira e José Carlos são pilares difíceis de transpor.
– Desiludido com o hóquei que veio encontrar depois de tantos anos?
– Desiludido apenas por não ter visto uma selecção com soluções estudadas para anular o tal quadrado defensivo que cada vez se fecha mais.»
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Reacção do seleccionador Júlio Rendeiro, no Jornal “A Capital” de 14 de Agosto de 1981, na íntegra, no que diz respeito ao descrito atrás:
– «Quanto à referida ausência de soluções atacantes, o seleccionador mostra-se também discordante:
– «O ataque tem de se ver como acção conjunta em que as oportunidades de golo podem surgir tanto a defesas como a avançados. A interacção entre os quatro jogadores em rinque é de tal modo íntima, até como resultado do seu reduzido número que me parece ser uma questão muito delicada avaliá-los como elementos isolados. A selecção será uma equipa que com a sua actual formação sofrerá sempre poucos golos. Quanto a marcar, pareceu-nos que nos desafios com o Brasil, Chile e Estados Unidos, onde somámos um total de oito golos com duas vitórias, sucessivamente, 3-1, 3-0, e um empate 2-2, poderíamos de facto ter marcado três vezes mais golos sem que tal parecesse anormal ou exagerado.
«Aconteceu ainda que foram os jogadores com posições mais recuadas no rinque os autores da maioria dos golos. Isso não quer dizer que eles sejam mais avançados do que os dois da frente. Simplesmente aproveitaram as oportunidades criadas por companheiros que lhes abriam o remate ao golo. Deve apreciar-se o comportamento da equipa de forma global.»
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(À posteriori, lêem-se uma crítica e uma explicação. Será que ambas foram completas? Acho que não. A primeira foi evidenciada pelo decorrer dos jogos e opinião generalizada dos cronistas, não passando de um mero corte superficial de bisturi. É impossível curar-se uma ferida sem se fazer um diagnóstico correcto, investigando o que se vê. A segunda peca por enevoar a questão, pois entende ser muito delicado avaliar os quatro jogadores como elementos isolados, sugerindo uma apreciação do comportamento da equipa de forma global.
Ora, a meu ver, a avaliação dos elementos isolados está ligada ao comportamento do seu conjunto. É importante tipificar a árvore para podermos classificar a floresta.)
Enfim, isto faz-me lembrar o meu bom amigo Paulo Garção, vice-presidente da Associação de Moçambicana de Patinagem que veio a Portugal, numa missão preparatória para o Mundial de Barcelos.
Transcrevo parte da sua entrevista:
«Segundo o mesmo dirigente, a participação na prova máxima da modalidade será vista como um teste de capacidade, numa altura em que o hóquei em patins é encarado, naquele jovem país, com muito carinho, visando o seu desenvolvimento e progresso. Nesse sentido, estão em formação, em todo o país, várias escolas de patinagem e, neste momento, existem já campeonatos estaduais nas categorias de infantis, iniciados, juvenis, juniores e seniores. O maior problema, todavia, é a falta de material…
«Se tivéssemos 500 mil pares de patins haveria jovens em número suficiente para os utilizar», afirmou ainda o dirigente moçambicano, dando, assim, uma imagem do interesse que o hóquei em patins desperta naquele país do oceano índico.»
(É o “milagre dos pães”… O eterno exagero de linguagem que não cola às realidades concretas que se vivem, que só criou ilusões, impedindo uma análise serena dos problemas, sua solução e progresso. Hoje, 2011, esse tipo de discurso já não resulta no hóquei em patins, se bem que continuamente utilizado, até porque os jornais já não se interessam como dantes, virados que estão para o Futebol, outra modalidade cheia de mitos.)
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Para finalizar este ano de 1981, Portugal venceu a Taça da Europa, em Juvenis, amenizando um pouco o 2º lugar conquistado pelos Seniores no Campeonato da Europa, realizado em Essen, na Alemanha.
Importante será também registar os componentes da Selecção de Juniores, cujos nomes, no futuro, virão ligados às suas carreiras no panorama nacional, apesar de não terem vencido o Campeonato da Europa da categoria, realizado em Genebra, Suiça.
António Livramento, (Técnico), Quim e Alexandre (guarda-redes), Realista, Hernâni, Vítor Hugo, Trindade, Rodrigues e Alexandre Serra (este do H. C. Monza).
Do Diário de Notícias, de 21 de Dezembro de 1981, um extracto:
«Para a história deste primeiro campeonato europeu (oficioso, pois na categoria a prova denomina-se Taça da Europa, ficam os nomes, para além do técnico José Lisboa, dos esperançosos seniores do futuro: Vitor Silva, João Vaz, Paulo Baptista (todos do Paço de Arcos), Carlos Campão, Nuno Martins, Paulo Morte (todos do Parede), Paulo Barroso e João Albuquerque (do Campo de Ourique) e Carlos Garção (Alenquer).