Uma recordação para a história.
Quando deixei a África do Sul, tendo ouvido rumores das dificuldades que as pessoas enfrentavam quando saíam de Moçambique em demonstrar a legitimidade dos seus haveres pessoais, preparei uma listagem de tudo quanto levaria comigo. Essa listagem detalhava em pormenor, isto é, títulos das obras da minha biblioteca, mobiliário de toda espécie, de sala, de quartos e cozinha, equipamentos com as suas marcas, quantidades, colchões, mantas, talheres, quadros, tapetes, tudo em que se possa pensar, estava declarado, num total de 16 metros cúbicos.
Só havia uma solução, trazer um atrelado dos Caminhos de Ferro à porta do meu prédio e carregar tudo para dentro dum contentor na presença do Fiscal Alfandegário sul-africano, que acedera efectuar esse trabalho.
– Argh! man… vai levar a sua casa para o Maputo?
Respondi-lhe que sim e ele eventualmente foi conferindo a minha lista, carimbou-a e selou o contentor. Partimos para os Caminhos de Ferro, onde despachei os meus haveres com destino às Mahotas, estação mais próxima da Quinta-Tri Marias, do meu cunhado, onde iria residir temporariamente. No dia em que o comboio partiu, deixámos definitivamente Johannesburg com a certeza que a nossa “casa” estaria lá no dia seguinte.
Para minha surpresa, quando me desloquei à estação das Mahotas, o contentor não estava lá! De acordo com o responsável, que não via entrar mas sim sair coisas, tinha-o enviado para o Cais de Contentores do Porto, por engano. Em pânico, apressei-me para esse local, atulhado de contentores para exportação, e ao fim de uma busca interminável, pois pareciam todos iguais, conferi letras e números e consegui detectá-lo, finalmente, para meu alívio. Se me tivesse distraído, possivelmente os meus haveres acabariam por viajar… sabe-se lá para que canto do Mundo.
Quando deixei Moçambique, 3 anos depois, fiz construir um contentor de madeira de 4x2x2 =16 metros cúbicos e fui despachá-los ao Porto. Ao contrário do Fiscal sul-africano que vira passar as coisas, o Moçambicano quedou-se a mirar o contentor, dando voltas em seu redor como se quisesse qualquer coisa. Como não me descosi, mandou abrir o lado adequado e meia hora depois estava tudo espalhado no chão. Bem tentou, mas não conseguiu encontrar um simples item que não estivesse na lista carimbada e previamente autorizada.
– Pronto… pode seguir! – disse o Fiscal, muito compenetrado.
– Pronto, não! – Retorqui, afinal o homem cumpria o seu dever – O camarada agora vai verificar que tudo seja metido dentro, bem arrumadinho. Eu voltarei daqui a duas horas!
E assim foi. Saí do País com o que tinha entrado!
…
Mas voltando ao assunto da minha indemnização.
Como se pode verificar do relato anterior, Parte 3, o processo de atribuição da indemnização, correu de uma forma inaceitável se tivermos em consideração o desfecho alcançado no limite, que passo a resumir:
22-Dezembro-1979 – É assinado um Contrato de Prestação de Serviços entre a República Popular de Moçambique (RPM) e a Companhia Nacional de Navegação (CNN), em que estabelece no Artº 6º :
«A Direcção dos Serviços de Marinha garantirá durante o período de prestação de serviço e pagará em moeda livremente convertível um seguro individual que proteja o tripulante contra acidentes de trabalho, riscos de morte e incapacidade temporária ou permanente. O valor deste seguro será o correspondente a US$ 60 000.»
A aplicação deste seguro é indiferente das categorias da tripulação, tanto vale para o Comandante como para o mecânico marinheiro, o que é certo, pois as vidas, nos infortúnios, não devem ser descriminadas.
05-Maio-1980 – Ocorre o meu acidente.
09-Abril-1981 – A Empresa Moçambicana de Seguros (EMOSE) emite o tal parecer em que tudo parece… pensamos… prevê… o estudo prevê como “standard” (ainda não está completamente definido)… nos parece…deverá ter em conta uma certa responsabilidade do MPTS (Ministério dos Portos e Transportes de Superfície)… O Sr. Velasco denotou confiança…
12-Maio-1981 – (um ano depois do meu acidente). O Ministro do MPTS fixa a hipótese da EMOSE, em despacho para o Ministro do Trabalho no seguinte valor: 550 000 MT
19- Junho-1981 – O Ministro do Trabalho concorda com a EMOSE, mas lembra o contrato firmado entre a RPM e a CNN.
23-Junho-1981 – O Ministro da Justiça… se não houver objecção, aplique-se a EMOSE.
06-Julho-1981 – O Director do Serviço de Execução Orçamental, Aires Albuquerque, da Direcção Nacional de Finanças, emite um extenso parecer, baseado numa análise detalhada da minha situação contratual e de vários diplomas oficiais chegando ao seguinte valor: 2 694 906 MT.
07-Julho-1981 – Despacho do Ministro das Finanças a autorizar a indemnização, sem referência ao parecer do seu próprio Director de Execução Orçamental, atrás descrito.
09-Julho-1981 – Despacho do Ministro do MPTS para proceder. Requeiro nesta data ao Ministro, certidão das informações, pareceres e decisões que levaram à indemnização. Requeiro também quantia suplementar para nova ida à Clínica de Munster, para recuperação de atrofia e ajustamentos de próteses orçamentada pela Junta Nacional de Saúde, da RPM, depois de visto por esta.
10-Julho-1981 – 6ª feira – Entrego na porta de armas da residência oficial de Sua Exª o Presidente da República, Samora Machel, uma exposição requerimento sobre esta questão. Enquanto isso, neste mesmo dia, a Inspecção de Créditos e Seguros emite Boletim de Autorização de cambial.
11-Julho-1981 – Sábado – O Banco de Moçambique processa os 550 000 MT em moeda convertível, que me são entregues na 23ª hora…
12-Julho-1981 – Domingo – Passei o dia em casa, lembrando-me dum certo filme que fez furor há muitos anos, il “mondo cane” , de Jacopetti, a lamber feridas e a preparar as nossas malas de viagem.
13-Julho-1981 – 2ª feira – Voámos para Portugal, eu exteriorizando uma falsa serenidade afim de não inquietar os meus e foi com esse espírito que começámos uma nova vida.
…
A partir desta data, paralelo à minha introdução no mercado de trabalho em Portugal, inicia-se o tal período “kafkiano” com as minhas incansáveis tentativas para levar o Governo de Moçambique a rever o processo de minha indemnização.
28-Out-1981 – Exposição ao Embaixador da República Popular de Moçambique em Lisboa.
17-Agosto-1982 – Exposição ao nosso Ministério de Negócios Estrangeiros.
01-Setembro-1983 – Exposição a Sua Exª o Presidente Ramalho Eanes, entregue pessoalmente ao Exmº Sr. Luis Pereira Coutinho, juntamente com cópia do processo da indemnização.
08-Maio-1984 – Carta ao Presidente Ramalho Eanes, entregue pessoalmente na Secretaria da porta de armas do Palácio de Belém.
10-Setembro-1984 – Carta ao Dr. Antero Sobral, com cópia do processo da indemnização e um Memo descritivo das minhas “démarches”, para o Dr. Almeida Santos, que se dignara receber-me no edifício da Presidência do Conselho de Ministros.
19-Novembro-1984 – Do nosso Ministério de Negócios Estrangeiros, recebo ofício com anexo do Cônsul de Portugal em Moçambique a informar que as autoridades locais não respondem aos ofícios por ele enviados.
26-Fevereiro-1985 – Insisto junto do nosso Ministério de Negócios Estrangeiros.
19-Abril-1985 – Nova carta ao Eanes (diga-se de passagem que para mim já estava a perder o rótulo de Presidente de todos os Portugueses, pois nunca sequer acusou recepção do que lhe foi nviado) que fui entregar na porta de armas do Palácio de Belém, zangando-me (injustamente) com a recepcionista acusando-a de não ter feito seguir a minha carta de 8 de Maio. Aflita, reagiu e veio um assessor a quem expus o problema.
30-Novembro-1985 – Carta registada ao Ministro da Informação da República Popular de Moçambique.
26-Fevereiro-1986 – Nova carta registada ao Ministro da Informação da República Popular de Moçambique.
1987 – Endereçado ao Exmº Sr. Mário Machungo, 1º Ministro de Moçambique, de visita a Lisboa, envio um telegrama via Embaixada da República Popular de Moçambique, Av. Berna 7 – 1000 Lisboa, descriminando toda a correspondência atrás citada que, com excepção do nosso Ministério de Negócios Estrangeiros (excepcionais a acusar e a responder às minhas missivas), nenhuma teve resposta, nem do tal assessor do tal presidente, que era de todos menos meu.
Julho de1988 – Carta ao Presidente da Assembleia Popular de Moçambique. Exmº Sr. Marcelino dos Santos. Também sem resposta.
…
A questão que se põe é porque insisti tanto nesta matéria?
Em primeiro lugar, por uma questão de princípio, pois a dois cooperantes da mesma nacionalidade, eu, com 70% de invalidez confirmada e o Domingos José Gomes de Araújo, falecido, tendo exactamente o mesmo contrato com o Governo de Moçambique, só diferenciado no que dizia respeito a nomes e profissão, foram decididas indemnizações diferentes. Felizmente, para a viúva do meu colega de mar, foi-lhe atribuído o seguro explícito no Contrato de Prestação de Serviços entre a República Popular de Moçambique (RPM) e a Companhia Nacional de Navegação (CNN) e não num parece… pensamos… o estudo prevê como “standard” (ainda não está completamente definido)… nos parece…deverá ter em conta uma certa responsabilidade do MPTS…
Em segundo lugar, porque o homem, o chefe de família, o profissional não deve esmorecer perante os obstáculos que se apresentam, deve lutar incessantemente, até reconhecer que não tem adversários, que eles não existem, escondidos por detrás dum silêncio insensitivo, mas nos seus ouvidos ensurdecedor. Além disso, tendo sido indemnizado em 20% do valor que seria devido, o preço de 1 dedo, os outros 4, com as suas contracções “fantasmas” permanentes, tipo ligeira dor de dentes, ao longo de 31 anos, reclamaram sempre por justiça.
Posto isto, deixo o Profissional e regresso ao Desporto, prosseguindo tenazmente com as minhas recordações, na rubrica, Eu, o Treinador, agora na Europa.
Olá,
Gostaria de confirmar se o Director do Serviço de Execução Orçamental, Aires Albuquerque era na realidade Aires Freitas de Albuquerque!?
Obrigado pela atenção
Cumprimentos
Caro Rodrigo
O documento que possuo termina com uma assinatura rabiscada e ilegível, mas como todos os documentos oficiais, por baixo da assinatura está o nome escrito à máquina: AIRES ALBUQUERQUE.
Infelizmente, não tenho maneira de confirmar se seria “Freitas de”. O único ponto comum entre o Albuquerque e eu, é que nasci em Goa e ele, se não nasceu lá é pelo menos descendente de familiares conterrâneos meus.
Espero que isto ajude. Cumprimentos.