A outra face do treinador…
Terminei a Época 1965-1977 – África do Sul, sem referenciar a outra face, a do Profissional que deixou lá obra, como assistente de arquitectura:
– A decoração do Pavilhão dos Diamantes para a Feira das Indústrias de Milner Park, o Hotel Johannesburger de 10 andares num canto do Joubert Park, a residência invulgar do arquitecto que me empregou, o Liceu da Sasolburg II, uma estação de serviço, moradias tipo em Heidelbergkloof, a enorme lavandaria de apoio ao centro turístico de Warmbad, e outros projectos, cujos detalhes de construção, saíram do meu estirador. Mas hoje, isso é história… o facto é que todos esses edifícios foram erigidos.
Depois de publicar a Época 1978-1979 – RPM – (parte 1), reflecti que não podia deixar África, sem revelar essa minha outra faceta. Estava a ficar incomodado por terminar a época passada em Moçambique, deixando para trás uma auréola que me envolvia como um Desportista sempre agarrado a um setique, ofuscando o Profissional que, acima de tudo, foi sempre a sua principal “raison d’être”.
Eis-me portanto de volta à República Popular de Moçambique, porque foi nesta que um capítulo tranquilo da minha vida se fechou inesperadamente, abrindo outro cheio de incertezas e angústias, que me assolaram até hoje e que nunca partilhei com os meus mais chegados, afim de não os afectar também. Pelo contrário, no meio dos altos e baixos, apontava-lhes sempre para um horizonte optimista, trabalhando arduamente para o alcançar.
Este relato será feito com documentos, por si próprios elucidativos, alguns editados no que é irrelevante ou repetitivo, comentado em negrito itálico, ou enfatizados a negrito normal e acompanhados de algumas historietas que pretendem reproduzir a curiosa atmosfera que me rodeava enquanto profissional.
Mas antes, devo esclarecer que durante uma visita relâmpago ao Maputo, para estar com a família, tive um encontro casual com o engenheiro chefe da Brigada de Portos, onde no passado trabalhara sob as suas ordens, e agora Director Nacional dos Transportes Marítimos e Fluviais, em que a conversa incidiu sobre a possibilidade de eu regressar à hidrografia. Para mim, esse encontro representou o único reconhecimento válido, jamais prestado, para mais vindo de quem veio, que a minha prestação profissional não tinha passado despercebida. Foi uma espécie de entrega de um “diploma” cujo efeito se traduziu no apagar definitivo das dúvidas que persistem, quando alguém, como eu, subiu a pulso e carregou o sabor amargo da falta de uma frequência universitária que definisse um nível concreto de conhecimentos. Não tive mais dúvidas e regressei bastante confiante.
Meses depois, em 18 de Setembro de 1978, assinava um contrato por dois anos com o Ministro dos Transportes e Comunicações e era integrado nos Serviços da Marinha. As instruções que recebi numa reunião posterior com o Director Nacional, (o ex-Engº Chefe da Brigada de Portos, acima mencionado), foram claras e precisas: constituir e liderar um grupo autónomo, lado a lado com a equipa de cooperantes da União Soviética. Na altura, como já tinha estado nos Serviços, tendo perguntado quem seriam os meus “índios”, tive como resposta que esse era exactamente o problema a resolver – a Formação de Moçambicanos, o que bastou para saber onde me situar.
A vida seguiu o seu percurso, meses decorreram paulatinamente e um ano e meio depois, no dia 7 de Janeiro de 1980, enderecei um requerimento ao Ministro da tutela, via o Responsável pela Hidrografia e o novo empossado Director Nacional, que a seguir reproduzo na íntegra.
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«EXCELENTISSIMO SR. MINISTRO DOS TRANSPORTES E COMUNICAÇÕES
«EXCELÊNCIA
«Francisco Xavier Franco Bélico de Velasco, natural de Goa, India, de 45 anos de idade, nacionalidade Portuguesa, possuidor do passaporte nº 4566/78, residente na Rua Pereira Marinho nº 273, Maputo, contratado pelo Ministério de Transportes e Comunicações para prestar serviço no Serviço de Hidrografia da Marinha, expõe a V. Exa o seguinte:
«Em 30 de Junho próximo, o signatário completará os 2 anos de serviço do seu contrato e não pretende renová-lo nas condições nele expressos, pelas razões que passa a informar:
«Moçambique é um País com uma costa extensa, com um potencial marítimo de incalculável valor, não sendo por demais afirmar-se que o futuro dele, mais precisamente, o futuro da sua evolução económica, encontra-se interligado com os 2700 kms da sua costa, de seus portos, do desenvolvimento da sua navegação fluvial, em resumo, da sua HIDROGRAFIA.
«Não foi portanto difícil ao seu signatário, originalmente desta terra, visualizar as perspectivas de trabalho interessante e intenso que essa Hidrografia iria proporcionar a um técnico da especialidade, desejoso não só de aplicar os seus conhecimentos, como também de transmiti-los a quem o rodeasse. Com esse intuito e animado desse espírito de fraternidade e militância profissional, há um ano e meio que o signatário se encontra enquadrado no Serviço de Hidrografia local, onde tem procurado pôr em prática tudo quanto consiste a sua bagagem técnica em benefício das necessidades da nossa Marinha.
«Numa análise retrospectiva, o signatário verifica que nada conseguiu nestes 18 meses, e que apesar da sua boa vontade, só esbarrou com obstáculos que não foram possíveis de superar. O signatário abre um parêntesis aqui para esclarecer que reconhece as dificuldades que o País atravessa, que tem sempre em mente a vastíssima frente de prioridades tão próprias deste período de Reconstrução Nacional. Todavia reconhece também que muito mais, muito mais mesmo, poderia ter sido feito com os recursos existentes, com a prata da casa, mas que não foi feito por razões que o signatário desconhece ou não aceita.
«O Serviço de Hidrografia, a manter-se o estado actual de coisas, quer queiramos quer não, constituirá inexoravelmente um empecilho ao desenvolvimento do País. Sem pretender transformar este Serviço em algo super-importante, ou mais importante que os outros, ele é contudo aquele que deveria estar na vanguarda dos demais. Sem ele não haverá Plano de Cabotagem racional. Sem ele não haverá tampouco uma empresa de Dragagens coerente ou rentável. Sem ele não haverá segurança de navegação, quer costeira quer internacional, porque sem ele não haverá Balizagem nem Farolagem. Para já em termos de divisas, estão as receitas dos portos de Maputo e da Beira comprometidas, com instruções, recentemente em vigor, que limitam os calados dos navios que a eles demandam.
«O Serviço de Hidrografia, ironicamente bem apetrechado com um grupo de técnicos competentes, não pôde, durante os dois anos passados, cumprir com a totalidade da missão para que foi formado e provavelmente não poderá fazê-lo no corrente ano, isso com as implicações sérias que se poderão antecipar. No momento actual, em que se avizinham rapidamente soluções políticas há muito desejadas, no seu “interland”, caso do Zimbabwe, o Serviço de Hidrografia, onde deveria excitar-se com as perspectivas que vão ser criadas, encontra-se acabrunhado, entristecido, desanimado e, o que é estranho, absolutamente isolado.
«Há cerca de 2 anos que os técnicos cooperantes da Hidrografia, dois engenheiros hidrógrafos, um engenheiro radiotécnico, um topógrafo operador hidrográfico, se encontram emparedados entre a necessidade grave e premente de uma acção profissional constante e a indiferença da Chefia dos Serviços da Marinha. Indiferença é a única palavra no diccionário que o signatário acha talvez apropriada para exprimir a sensação que domina esses mesmos técnicos. As razões poderão ser outras e tudo poderá ter uma explicação simples mas contudo, até esta altura, ela é desconhecida.
«Vejamos as realidades das coisas, partindo do facto incontestável que a Hidrografia existe, que os técnicos necessários lá se encontram e que o trabalho que há a realizar é tão vasto e urgente que se mede em milhares de quilómetros e anos de actividade:
«- A Chefia do Serviço de Hidrografia está lamentável e irremediavelmente desprestigiada perante o pessoal que o forma.
«- Os técnicos cooperantes, contrariamente aos seus desejos, sentem-se inconfortáveis, como se postos à margem, numa inactividade destruidora, cansados e já sem esperanças.
«- O Sector de Hidrografia não possui recursos para executar os seus trabalhos. Não tem embarcações ou se as tem encontram-se a seco, sem motores, ou, então, sem condições mínimas de navegação que assegurem a vida dos seus tripulantes e pessoal. O aparelho de sondagens existente, com mais de 20 anos de uso, parou de trabalhar em Quelimane e por lá ficou. Não possui rádios de comunicação para os seus operadores. Os sextantes são os que a ex-Missão Hidrográfica deixou, avariados, desrectificados e somente adequados para as vitrinas da Escola Náutica, como peças de Museu.
«O Sector de Topografia também não possui recursos próprios. Não tem o número nem a qualidade necessária de instrumentos topográficos e vive de empréstimos. Faltam teodolitos, níveis, estadias, miras, tripés, etc. Não possui meio de transporte adequado, rápido, para deslocações em qualquer tipo de terreno, do tipo “land-rover”. Desloca-se num “Volkswagen” de turismo, velho, accionado exclusivamente devido à vontade férrea dos seus utentes soviéticos, mas o signatário prevê que terá brevemente o mesmo destino da sonda sonora: parará porque já deu o que tinha a dar.
«- O Sector de Cartografia, englobando a sala de desenho, encontra-se na mesma situação. Faltam instrumentos e materiais de todo o tipo, vive de assistência de particulares e para se dar uma ideia, não conseguiu ter nas suas mesas, em dois anos, borrachas vulgares, adequadas ao papel e filmes que se usam na produção de desenhos. Como consequência, não tem podido executar as cartas referentes aos levantamentos efectuados nos anos de 1978 e 1979. Não possui cartógrafo nem aprendiz a essa posição.
«- No aspecto do Pessoal, houve um momento de entusiasmo e actividade relacionados com a presença de Técnicos Moçambicanos, quatro, acabados de regressar de curso efectuado em Portugal e que, durante certo período, estiveram presentes no Serviço de Hidrografia. Rapazes novos, inteligentes, com conhecimentos teóricos valiosíssimos, cheios de entusiasmo pela matéria que estudaram, foram imediatamente acoplados aos diversos sectores dela, apoiados pelos técnicos cooperantes respectivos, um na Hidrografia, propriamente dita, outro na Navegação, outro na Balizagem e outro na Cartografia. Pretendia-se, dentro dos planos de formação profissional, que eles pudessem vir a constituir, com a sensibilização actual dos nossos problemas e dificuldades, com a actividade futura e apoio dos mais experimentados, o esqueleto do quadro de hidrógrafos genuinamente Moçambicanos que se pretende a médio e longo prazo. Sol de pouca dura, foram retirados exactamente quando iam iniciar a sua actividade em força, quando já executavam certos trabalhos, em resumo, quando se sentiam psicologicamente aptos a enfrentarem as suas tarefas. Encontram-se hoje, por vezes, de guarda, à entrada do edifício dos Serviços de Marinha. Ninguém sabe porquê, mas todos reconhecem que técnicos especialistas de qualquer coisa, levam anos a fazerem-se e que guardas, também necessários, fazem-se com três meses de recruta normal.
«- Quanto aos demais, à marinhagem e trabalhadores assistentes dos variados sectores da Hidrografia, o signatário realça a curiosidade de que no final desta década, em que todos pomos as nossas esperanças, a idade média dos mesmos atingirá possivelmente a casa dos 60 anos e, para reflectir, como resultado dum levantamento hidrográfico, o sondador acabou por ficar dois dias com o corpo dobrado, dificilmente podendo endireitar-se. Tal como a sonda, tal como o “Volkswagen”, já não se pode exigir mais.
«- A actividade profissional não correspondeu, na opinião do signatário, a 40% do seu potencial. Houve racionalidade na planificação da mesma, mas na maior parte das vezes foi impossível a sua implementação. Nada funcionou correctamente ou como se previra. Nuns casos mandou-se o pessoal e não se mandou o equipamento como se programara. Noutro mandou-se o equipamento mas não foi o pessoal. Naqueles em que foram um e outro, regressou o “um” e ficou o “outro”. Há cerca de três meses que o Engenheiro radiotécnico aguarda ansiosamente o regresso da sonda avariada, a única que existe no País, para ver se consegue repará-la para futuras necessidades. Independentemente destes aspectos de detalhe, numa apreciação geral, toda a actividade planificada cuidadosamente e com a devida antecedência, não passou de dezenas de planos e programas que não foram sequer aprovados ou desaprovados, quanto mais implementados. Para desespero dos técnicos, a maior parte das decisões são tomadas via canais que desconhecem a complexa problemática dos assuntos topo-hidrográficos. Ordenam-se trabalhos para alturas do ano menos aconselháveis. O projectado levantamento do porto de Inhambane é prematuro, coincide com a pior época do ano, de fortes ventos e chuvas imprevisíveis. A rentabilidade dos trabalhos será fraca, de padrões também fracos. A Hidrografia, em princípio, só deve realizar trabalhos de campo durante seis meses do ano, reservando o resto à actividade de gabinete. Nos seis meses mais próprios conseguem-se rigores de + ou – 10 ou 20 cms. Nas épocas impróprias, de + ou – 50 cms, quiçá 1 metro. Todavia pretende-se levantar Inhambane, nesta altura, estando as datas já marcadas, com a agravante de nem sequer sabermos se a sonda sonora pode ser arranjada!
«- Isolados, os técnicos cooperantes não encontram média para se fazer ouvir. Recebem recados, na maior parte confusos, contraditórios e irritantes. Sentem que não participam das decisões técnicas do âmbito da sua acção profissional e que assuntos desta natureza não estão a merecer a atenção que seria de se desejar. Sentem também que tudo isto está a custar dinheiro ao País e que mais custará ainda com cada dia que passa. E reclamam ou comentam que uma actividade deste tipo, de natureza científica, de longa, árdua e cuidadosa investigação, não pode ser tratada de ânimo leve, como se dum serviço de bombeiros se tratasse.
«Todos estes aspectos constituem a razão de ser que levam o signatário a não desejar renovar o seu contrato e a exposição dessa mesma razão de ser não deve ser construída como se motivada por interesses ou intenções de qualquer outra ordem que não seja a amizade sincera que o signatário nutre pelas coisas desta terra.
«Nas condições prevalentes, o signatário pensa que a sua presença na Hidrografia é supérflua e julga que poderá ser útil noutro sítio qualquer. Assim, ao abrigo do disposto no artº 1º do seu contrato, o signatário requere que esta seja considerada como aviso prévio da terminação do mesmo.
«Respeitosamente, Maputo, aos 7 de Janeiro de 1980.»
…
No documento acima, as frases a que dei relevo, requerem uma explicação:
– “não haverá Balizagem nem Farolagem” – Numa das minhas missões de trabalho da Hidrografia, coube-me visitar determinados portos ao longo da costa de Moçambique, desde Angoche até à Ponta do Ouro e investigar a situação dos mesmos, o que consegui durante pouco mais do que um mês, em condições difíceis de acesso. Nunca pensei deparar com uma situação tão deplorável como a que descrevi num relatório, posteriormente entregue nos Serviços. Não entrarei em detalhes mas fiquei esclarecido sobre o estado de coisas neste Sector, habilitado portanto a fazer esta afirmação.
– “desprestigiada perante o pessoal” – O nível hierárquico da Hidrografia comportava o Responsável por ela e acima, o novo Director Nacional. Sucede que a certa altura, sem conhecimento dos cooperantes, o Responsável desapareceu durante mais de um mês, sem dizer “bye-bye”, deslocando-se ao Rio Zambeze, para efectuar um levantamento topo-hidrográfico, cuja ausência se prolongou por mais de um mês. Os dois superiores hierárquicos, devem ter reunido e sopesado as dificuldades e os custos de enviarem os especialistas, estando eu em crer que o nosso Responsável se ofereceu para ir ele executar o trabalho.
Regressou eventualmente, meteu-se no seu gabinete e produziu um relatório meticuloso, com os respectivos cálculos das coordenadas que enviou para a Direcção Nacional. Como era norma eu verificar o trabalho do grupo soviético e eles verificarem o meu, por precaução, o Responsável veio ter comigo e entregou-me o relatório para confirmação. Prontifiquei-me imediatamente e como era natural li o intróito muito bem articulado e passei aos cálculos para confirmar as coordenadas calculadas por ele, referentes à poligonal que traçara. Bastou-me olhar para os números e detectar senos maiores que 1, isto é, senos 1,243567… 1,344458… para dizer-lhe que a coordenação estava toda errada. – Oh, Diabo! Já o enviei! – exclamou.
Fiquei preocupado e com uma certa pena dele. Disse-lhe que iria ver o que poderia fazer, de um modo gráfico, desenhando o percurso que fizera com o instrumento mas que para isso, necessitava das cadernetas de campo onde ele apontara os ângulos e distâncias lidas. Apressou-se em ir buscá-las. Se existe algo que define um operador são os seus registos. Fiquei siderado, pois os cânones desta profissão tinham sido violados e só descritos numa página de humor, o que não farei. Ali, sem mandato para o efeito, disse-lhe que estava proibido de efectuar trabalhos deste tipo.
Dias depois, numa reunião na sala de desenho, com todos os técnicos presentes, o Responsável, acompanhado do seu funcionário de Secretaria, sempre na sua peugada para tirar notas para as actas, iniciou um debate sobre a manutenção das Bóias em que intervieram os presentes e os russos com o seu tradutor a traduzir mal. Chamei a atenção que enormes bóias estavam a ser raspadas e picotadas no estaleiro, o que durava meses, aplicando-se tintas anti-corrosivas, anti-vegetativas e outras que eram depois recolocadas no sítio donde tinham sido levantadas, a um custo tremendo. Sugeri que se mantivessem as mesmas armazenadas no estaleiro. À minha memória viera a imagem da bóia 2N á entrada da Barra Norte, que ficava a seco durante as marés-vazias. Num aparte, – eu intervinha com mais frequência que os demais colegas dadas as dificuldades com as traduções e por alguns ainda se encontrarem na fase de formação.
– E ficamos sem bóias? Isso será um desprestígio!
– Ponha lá sacos com cocos! – Respondi, olhando para o Responsável, com uma certa paciência, que reagiu ordenando ao escriturário que anotasse a minha sugestão na acta.
Esperei que o funcionário acabasse e instruiu-o para que continuasse a tirar notas para a tal acta, da minha justificação qualificada que se seguiria. Levantei-me, fui para o quadro e desenhei com giz uma rede cheia de cocos, um mastro enterrado e preso entre eles, encimado por uma haste e respectiva bandeira. Um sinal marítimo artesanal, lastrado, que se consegue pôr a flutuar à medida desejada, por meio de testes junto a um cais, tal com se faz com os flutuadores utilizados nos estudos de correntes. Cores da bandeira e do barrote de acordo com especificações internacionais, “bóias” estas que pejavam as ilhas dos mares da Indonésia, que me guiaram muitas vezes na navegação junto à costa.
Mais, esclareci que desprestigiante seria encalhar um navio por termos uma bóia restaurada fora do lugar. Que o estado da nossa balizagem era do conhecimento geral, pois os comandantes dos navios, detectando anomalias, informavam o Centro Naval da África do Sul, que irradiava para o resto do mundo essa informação. Que era oneroso para o País perdermos bóias tremendamente caras, em temporais fortuitos, (o que já sucedera), com a agravante de estarem fora do lugar. Conclui, esclarecendo que só depois de se efectuarem os levantamentos hidrográficos é que poderíamos determinar o seu posicionamento, reiterando que entretanto deviam manter-se arrecadadas nos estaleiros. Fim de conversa.
– “vive da assistência de particulares”- Minha… pois trouxera da África do Sul instrumentos de desenho, canetas Rotring, calculadores programáveis modernos da Hewlett Packard, borrachas de todos os tipos. Quando estas se gastaram, dirigi-me à Secretaria do Ministério de Transportes onde me informaram que não haviam e não tive relutância em lhes dizer que iria pedir ao Sr. Ministro, pois calculava que ele tivesse umas poucas. Subi ao terceiro andar e fui travado pela minha ex-colega da Divisão de Estudos, a estimada D. Maria Ilda Guião, que saltou de detrás dum biombo e me perguntou o que fazia ali a bater à porta. No exacto momento em que um funcionário me entregava apressadamente uma caixa com borrachas, abriu o sr. Ministro a porta. Reconheceu-me, e eu disse-lhe que, tendo vindo pela primeira vez ao Ministério, não podia deixar de o cumprimentar e informá-lo que tudo estava a correr bem. Simpático como sempre, trocámos umas breves palavras e regressei à Hidrografia com as tão necessárias borrachinhas.
– “Rapazes novos” – Soube acidentalmente que no comando Naval se encontravam 4 militares, no activo, que tinham tirado um curso no Instituto Hidrográfico de Portugal. Não perdi tempo, e por minha alta recreação, solicitei uma entrevista com o seu Comandante, que gentilmente me recebeu. Expliquei-lhe a situação da Hidrografia, que ele compreendeu e, dias depois tive a grata surpresa de os ver nos nossos Serviços.
– “na maior parte confusos” – Dum dia para o outro recebi uma guia de marcha para deslocar-me à Beira, no avião já marcado para o dia seguinte, com a indicação de repor urgentemente uma bóia afastada do lugar. Cumpri, investiguei a situação, localizei todas as bóias, fiz umas sondagens a prumo junto delas, rigorosas, tirei as minhas conclusões e regressei dias depois à capital. Ao entregar o meu relatório, perguntado pelo Director Nacional se tinha realizado o trabalho, disse-lhe que não. Informei-o que só depois de se efectuar o levantamento hidrográfico do canal na altura extremamente assoreado, é que posicionaríamos a bóia em causa. Que o piloto local, entretanto, continuaria a guiar-se por ela, fazendo as devidas correcções, apesar de estar afastada umas largas dezenas de metros.
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A despedir-me na quinta Tri-Marias, de minha irmã Graça e meu cunhado João Dionísio dos Santos... ou seria da mão?
Meses depois, dando cumprimento a uma directiva para efectuar o levantamento hidrográfico do Porto de Inhambane, largamente assoreado e inoperacional há vários anos, parti com um grupo de trabalho, que incluía o engenheiro electrotécnico soviético pois os demais terminaram a sua comissão e retornavam às suas terras de origem e seriam substituídos por novos cooperantes.
A tarefa era gigantesca. O levantamento do mar teria de ser baseado nos vértices geodésicos de terra, cuja inter-visibilidade fora afectada pelo crescimento de coqueiros e de outras árvores. Foram dias de trabalho penoso para todos, incluindo eu, que como topógrafo, nunca fiquei debaixo da sombrinha, e atirava-me com gosto para o meio do grupo de trabalho, suando de motor-serra na mão, a ajudá-los a abrir clareiras na vegetação e a derrubar coqueiros uns atrás dos outros.
A propósito do espírito de grupo que criava com extrema facilidade e naturalidade, é importante deixar registado, que ele também funcionou no desporto, em subsequentes épocas em que liderei equipas, como se verá nesta série de recordações. Tendo decidido que o quartel-general seria no Tofo, avancei para o Hotel sobranceiro ao mar para acomodar o pessoal, uma dezena e meia de elementos. Fui informado pelo gerente que eu e o russo podíamos instalar-nos, mas que os outros não. Fiz uma cara de surpresa e repliquei que, como o hotel estava vazio, não compreendia a sua relutância em nos acomodar a todos. Respondeu-me que eram ordens. Sabendo isso, claro, solicitei-lhe que telefonasse ao seu superior para vir com urgência ajudar a resolver este problema, que nós aguardaríamos. Entretanto, inspeccionei o local.
Talvez uma hora depois, com todo o grupo a aguardar o desenlace, apareceu o responsável a quem me apresentei e expus o problema. As ordens dadas ao gerente foram reiteradas e que o resto do pessoal teria de se desenrascar por ali. Foi uma conversa de loucos, apesar de formal e respeitosa, durante a qual, indicando uma fiada de moradias fronteiras ao Hotel, que estavam vazias, perguntei se não podíamos acomodar-nos nelas. Impossível, eram moradias particulares, pertencentes a sul-africanos, que tinham de permanecer fechadas.
Como sou persistente, mostrei-lhe a guia de marcha que ele teria de assinar e apontei para o Unimog e o atrelado com a embarcação Coronet. Viajámos desde o Maputo e estávamos cansados e a alternativa seria regressarmos à capital. As estruturas locais têm de proporcionar acomodação, trabalhamos de dia e fazemos cálculos durante a noite. O meu interlocutor que aparentava agora algum nervosismo, aproveitou para me informar, com certo alívio, que não havia electricidade nas casas. Insisti, sempre a pressionar, apontando para uma casota que albergava um motor gerador. Não há diesel, apressou-se em elucidar-me. Final da história, mandei um marinheiro rolar um bidão de 200 litros para o chão, dizendo-lhe que diesel não faltaria.
Resignado, mas sempre cortês, abriu-nos duas moradias, que inspeccionámos juntos. Escolhi as salas de cada uma, garantindo-lhe que só ocuparíamos essas divisões depois de arrumar os mobiliários nos outros quartos de cama e que deixaríamos o local exactamente como o encontrámos. Na sua presença, dividi o pessoal pelas moradias que de imediato criaram espaços para abrirmos as nossas macas de campanha, alertando-os para o meu compromisso. Até ao meu acidente, ninguém tocou num bibelot sequer, nada foi mexido ou remexido naquelas moradias totalmente apetrechadas e mobiladas com gosto. Fui o único que retirou duma estante, um livro sobre fauna e flora marítima, tendo focado a minha leitura numa obra respeitante às diferentes espécies de tubarões do mundo. Acho que o proprietário era um amante desses temas.
Deste modo, tendo defendido a dignidade do pessoal, ficou criado o espírito de grupo tão necessário para que as tarefas mais espinhosas pudessem ser ultrapassadas e às quais nunca regatearam o seu empenhamento. Não era novidade para mim, pois este posicionamento em defesa do grupo já vinha de Timor. Vinte e cinco anos depois de eu lá ter passado, recebi a visita de Victor Godinho, ex-cabo europeu, na disponibilidade, casado com uma moça da terra, que admitira como meu topógrafo assistente, de modo a proporcionar-lhe um emprego, coisa difícil de se arranjar em Díli. Para minha surpresa, aproveitou uma visita a Portugal, tendo feito questão de me procurar e agradecer os ensinamentos adquiridos quando trabalhou comigo. Vivia e ainda vive na Austrália, onde se refugiou com a família, e era funcionário do departamento de topografia do Porto de Darwin. Foi ele que me deu a triste notícia que Natalino Leitão, outro jovem que também admitira e que se formara como desenhador cartográfico, sob a minha orientação, tinha sido morto pelos indonésios.
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REPÚBLICA POPULAR DE MOÇAMBIQUE – MINISTÉRIO DOS TRANSPORTES E COMUNICAÇÕES – DIRECÇÃO DOS SERVIÇOS DE MARINHA – ADMINISTRAÇÃO MARÍTIMA DE I’BANE – AUTO DE DECLARAÇÕES.
—Aos vinte dias do mês de Maio de 1980, eu MOMADE ZAINADINE, Cabo-de-mar de segunda classe, interino e Escrivão de primeira classe, Substituto, em serviço na Administração Marítima de Inhambane, desloquei-me ao Hospital Provincial desta cidade, onde se encontra hospitalizado o Sr. Francisco Xavier Franco Bélico de Velasco, portador do passaporte nº 4566/78, emitido no dia 29/9/78 em Johannesburg, válido até 28/9/83, casado, nascido em 16/11/934 em Ribandar-Goa, filho de Cláudio César Franco Bélico de Velasco e de Maria Luisa Lopes Pereira de Velasco, residente em Maputo, Rua Pereira Marinho nº 273, Topógrafo-Hidrógrafo dos Serviços de Hidrografia em Serviço na Direcção dos Serviços de Marinha, a fim de lhe ouvir em declarações, conforme o despacho do Exmº. Senhor Capitão do Porto, Substituo AGY MOMADE AGY exarado no documento a folhas um deste processo.—
—Perguntado sobre o acidente verificado no dia 8/5/80, o Sr. Velasco relatou o seguinte: Já há muito tempo o relator verificava a necessidade de se manter dentro das lanchas Hidrográficas sinais luminosos do tipo VERY-LIGHT, uma vez que os aparelhos de rádio comunicação “WALKIE-TALKIE” de que o grupo se encontra dotado não funcionarem para os alcances necessários por terem sido recuperados de aparelhos há anos abatidos ai inventário pela Pilotagem de Maputo.—
—O relator teve sempre em mente a possibilidade de os motores da embarcação CORONET falharem, pararem e serem arrastados ao sabor das correntes. Solicitou por conseguinte VERY-LIGHTS para utilização no caso de necessidade ou como sinal combinado com os diversos elementos postados nos diversos vértices geodésicos.—
—Antes de fazer a escolha nos vários caixotes postos à disposição pela Administração Marítima de Inhambane, estudou cuidadosamente os diferentes modelos optando por um de utilização Manual cuja simplicidade de manejo não lhe fez prever uma explosão da natureza que se verificou. Assim, no decorrer do seu dia de trabalho depois de ter efectuado observações nos vértices Acerto Cais e Ray Maxixe, tendo-se deslocado posteriormente a Linga-Linga, para montagem duma marca alagada e investigação das marcas de nivelamento, preparou-se para efectuar observações nocturnas para coordenação do vértice Linga-Linga, que tinha sido construído para o efeito.—
—Depois de desembarcarem o material e equipamento de Topografia, o relator que se encontrava na companhia dos seus colegas Abdul Aziz Hussene Jamal, Lino Leonardo, José Januário e Bernardo Alexandre, este último pedreiro da Administração Marítima de Inhambane, verificou a impossibilidade de se proceder às observações, uma vez que começou a chover e a fazer vento Sul.—
—O sinal combinado para que os elementos estacionados nos diversos pontos a observar, Condejane, Guionde e Alto Maxixe que o trabalho fora interrompido por qualquer motivo, era o lançamento de VERY-LIGHT que àquela distância seria observado permitindo a esses elementos apagarem os Petromáxs e abrigarem-se ou regressarem à base.—
—O relator pegou por conseguinte no sinal luminoso, afastou-se uns passos começando a proceder de acordo com as instruções do seu manejo, em voz alta: segurar o sinal com o braço estendido à altura da face, remover a fita isoladora da rolha do topo, não remover a rolha, remover a fita isoladora e o pinhão metálico de segurança e rodar para deflagração do sinal. Instantâneamente verificou-se a explosão que destroçou por completo a mão direita do relator e provocou um corte profundo acima da falange do indicador da mão esquerda. Depois disso, o seu colega Aziz improvisou um torniquete, uma liana de planta pois não possuíam o material de prontos socorros na embarcação, com o intuito de evitar-se uma grande perda de sangue. Seguidamente foi transportado pelos seus colegas para a chata e desta para a CORONET, e como é evidente altamente impressionados com o desejo único de chegar o mais depressa a Inhambane o que conseguiram no mais curto espaço de tempo que foi possível.—
—Como algo fora de extraordinário o relator não pode deixar de registar a ansiedade e o carinho com que os seus colegas o ampararam naquele momento difícil.—
—Chegados a Inhambane, foi transportado para o Hospital Provincial desta cidade, onde foi submetido a uma operação da qual amputaram-lhe a mão direita.—
—Ditado na presença do senhor Abdul Aziz Hussene Jamal, pela pessoa acima mencionada.—
– NADA MAIS DISSE.—
—E sendo-lhe lidas as suas declarações, as achou conforme, não podendo assinar por incapacidade física devido a amputação da mão direita, indo ser assinado pelo Capitão do Porto e por mim Escrivão que o dactilografei.—
Prosseguirá na parte 3
Impressionante relato,,,fiquei sem palavras, apenas uma dor no coracao…
Bem Hajas Xico!
Caro Francisco, sou o Joao Nuno Maia, filho do Dr. Silva Maia. Fomos seus vizinhos em Maputo na rua Pereira Marinho. Recorda-se? penso até que terei brincado com o seu filho, que quanto me recordo na altura falava apenas ingles… encontrei o seu site por acaso e deu-me uma “nostalogia”… regressámos de Maputo (para lisboa) em 1980 e jamais revisitei a cidade, vi umas fotos suas no site, onde aparece a nossa casa (actual embaixada da libia) por trás. Será que tem em sua posse algumas fotos desses tempos que possa partilhar? o Francisco onde mora agora? em Lisboa? O meu Pai faleceu inesperadamante em Setembro de 2009. Um abraço amigo…
Joao Maia
Caro João Maia
Tenho uma vaga ideia de teres convivido connosco nessa altura. A casa por detrás das fotos era patrulhada por uns três cães, daqueles que não crescem muito mas são altamente viciosos. Atacaram o meu filho Cláudio quando ele, por qualquer razão lá entrou, (acho que havia lá uma pequena piscina), e os gritos foram de certeza em inglês, pois a língua da casa era essa. Tivemos de o levar ao hospital para uma injecção e o meu filho nunca mais se aproximou daquele muro.
Não possuo mais fotos dessa altura e nenhuma contigo ou com outros vizinhos. Não existiam máquinas digitais e tive sorte em perseverar umas poucas. Lamento o falecimento do teu Pai e registo que vieram para Portugal no ano em que sofri o acidente. Resido em Lisboa, mais propriamente em Alcântara.
Um abraço