Um depoimento a um Sr. “Alguém”

Exmo. Sr. “Alguém*

14 Abril de 2003

Um depoimento escrito, sobre as nossas Selecções Nacionais de Hóquei em Patins, do século XX, tendo por base o que me foi pedido, não é uma tarefa fácil, pois as recordações dos eventos e das imagens registadas são tantas que uma escolha relevante se torna complicada.

Mencionou na sua carta que “desde a mais tenra idade que grande parte do povo português mantém uma recordação mais ou menos viva de um desporto que, ao longo da marcha do tempo, marcou a auto-estima nacional, valorizando-a, indubitavelmente pelo seu prestígio e pelas suas conquistas aquém e além fronteiras.”

Nessa sua passagem, a mais tenra idade é de facto o período mais marcante na vida de uma pessoa. É durante ela que os modelos se gravam de uma forma indelével e acabam por determinar os caminhos de alguns. O meu, seguramente, foi influenciado por um acontecimento desportivo fora de vulgar ocorrido em 1949, já lá vai mais de meio século, quando a nossa Selecção Nacional, Campeã do Mundo, visitou Moçambique a convite do Grupo Desportivo de Lourenço Marques, uma cidade que na altura já tinha lançado as infra-estruturas que a transformaram num dos centros desportivos mais importante do território português.

O impacto dessa digressão que redundou num êxito estrondoso, teve consequências tão dramáticas que em menos de dez anos após esse acontecimento, quatro garotos, incluindo eu, de doze a quinze anos, que da bancada se tinham deliciado com o que viram no rinque, tornavam-se eles também Campeões Mundiais. As coisas não sucederam por acaso e vendo-as no contexto da época, não é de admirar que a auto-estima dos portugueses se valorizasse pois um Portugal menor, que passou à ilharga dum conflito violentíssimo, à escala planetária, que tornou perdedoras as nações que o protagonizaram, era ao fim e ao cabo o maior, era Campeão do Mundo!

Bem hajam o Emídio Pinto, o António Martins, o Raio, o Edgar Bragança, o Correia dos Santos, o Joaquim Miguel, o Manuel Soares, o Álvaro Lopes, o Vasco Velez e o António Henriques, que foram àquela distante África lançar as sementes de uma qualidade desportiva ímpar que agitou e reavivou o cordão umbilical que parecia não existir, entre os Portugueses de cá e os de lá. Nós, a garotada daquela cidade, já os conhecíamos pelos nomes que a Emissora Nacional nos fazia chegar, relatando os seus jogos, os seus golos, a sua mestria, tudo isso intervalado com uns quantos fados que vinham criar uma sensação nostálgica, misto de alegria e de tristeza, não se sabia bem por quê.

Olhando de uma forma distanciada, posso afirmar que o Hóquei em Patins, que já vinha sendo praticado em Lourenço Marques há uns bons anos antes, – ainda hoje está suscitada a dúvida se o primeiro jogo, em Portugal, não teria ocorrido naquela cidade -, a partir dessa data, nunca mais foi o mesmo. O entusiasmo gerado nos de tenra idade foi indiscritível e no meu clube, ou melhor, nas instalações da sede do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria, onde a “malta” se encontrava diariamente, jogava-se à Velez, à Raio, à Edgar, durante horas a fio, com ou sem patins, no rinque ou nas ruas dos bairros onde morávamos.

Felizmente, e as coisas aqui têm de ser atribuídas a um mero acaso, um dos funcionários que trabalhava na secretaria do Sindicato, o inesquecível Armando Lima de Abreu, que teria sido um dirigente em Oeiras, ao ver toda aquela azáfama da miudagem, resolveu pegar nela e dar-lhe um mínimo de organização e disciplina. Foi o começo duma liderança inigualável e de uma relação de amizade entre todos que perdurou para sempre. E foi, graças a esse grande obreiro, que Moçambique pôde apresentar na Metrópole, seis anos depois, a equipa do SNECI cuja actuação acabou por surpreender o público e uma crítica conhecedora e exigente que acreditou nos atletas moçambicanos, jamais regateando elogios e carinho. Nessa equipa sobressaíam já quatro futuros campeões do mundo.

Três anos mais tarde, inicia-se um ciclo avassalador. Na minha curta carreira que todavia abarcou 3 Campeonatos do Mundo, 2 da Europa, 2 Torneios de Montreux, versões da Taça Latina e provas internacionais, apareceram a liderar as Selecções Nacionais de Hóquei em Patins de que fiz parte, exactamente os ídolos da minha infância, o extraordinário Emídio Pinto, o “doutor” António Raio e esse querido amigo Jesus Correia, coadjuvados pelo impagável António Henriques e pelo Cipriano. Eles sabem da admiração e respeito que sempre mereceram da parte dos miúdos que os tinham perseguido, em África, em busca de autógrafos e, diga-se em abono da verdade, que essa relação foi sempre recíproca.

Foi uma época inolvidável, este ciclo, em que a qualidade humana dos dirigentes que rodearam estas Selecções Nacionais ressaltaram pela forma cavalheiresca e sempre digna como trataram os seus atletas. Correndo o risco de lacunas imperdoáveis, não posso deixar de citar o Presidente Gaudêncio Costa, o Nelson Soromenho e evocar aquele que, para mim, foi “primus inter pares”, o saudoso Joaquim Tito Moreira Rato.

Só assim foi possível o espírito de grupo, de verdadeira irmandade que se verificou entre nós, os “de lá”, e todos os nossos companheiros de equipa. E agora, sem perigo de omissões, recordo-os com saudade, o Matos, o Edgar, o Mário Lopes, o Perdigão, o Vaz Guedes, o Bernardino, o Trabazos, o Vitor Domingues, o Virgílio, o Rui Faria, o Pompílio, o Licínio Barros, o Abílio Moreira, o Carrelo, o Tavares, o Leonel Fernandes e o Livramento, pelo que passámos juntos, por todos os sacrifícios feitos, pela ansiedade e emoção dos acontecimentos, pela entrega e entreajuda nos “combates”, por vezes titânicos, que travámos para trazer para Portugal os tão ambicionados títulos, enchendo de orgulho os demais portugueses e valorizando, tal como escreveu, a sua auto-estima nacional.

Pena é que a história de antanho não tenha sido bem contada e acabasse por se diluir com o andar dos tempos. Não digo isto por estar animado de qualquer saudosismo banal, mas sim porque sou uma testemunha que o Hóquei em Patins viveu e tem vivido exclusivamente das suas glórias, pouco se importando em registar os detalhes e os porquês das mesmas. Espero que o senhor “Alguém* tenha sucesso e que esta sua iniciativa traga o contributo a que se propõe, pela mais-valia que isso representa. Sem história e apesar de todos os títulos conquistados, seremos sempre grandes vencidos, pois sem história nada poderemos legar aos vindouros e será como se não tivéssemos existido.

Como curiosidade, deve haver algures uma fotografia tirada no antigo rinque do Paço de Arcos, antes dum jogo improvisado e particular, que registou para a posteridade a disputa de um “garrafão de vinho”. Nela aparecem, os de tenra idade, o Alberto Moreira, o Manuel Carrelo, o Fernando Adrião, eu e o Amadeu Bouçós, e os menos tenros, Emídio Pinto, António Raio, Edgar Bragança, Jesus Correia e Correia dos Santos. Não ostentavam, mas eram todos Campeões do Mundo, Campeões da Europa, Campeões Latinos e vencedores da Taça das Nações. Claro que o jogo terminou empatado, para gáudio de uma assistência entusiasmada, aparecida não se sabe donde e que encheu as bancadas. O troféu foi atribuído às duas equipas e acabou, como se antecipava, por ser bem bebido durante a imemorável caldeirada que se seguiu.

NOTA: O sr. “Alguém”… que anda por aí, foi quem me pediu este depoimento, não acusando a recepção. Como até hoje não sei o destino que lhe deu e já lá vão 7 anos, resolvi tirá-lo da Cartola e inseri-lo neste meu Site.

 

 

 

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11 Responses to Um depoimento a um Sr. “Alguém”

  1. João Joyce Chalupa says:

    O site está fabuloso. Parabens

  2. Velasco says:

    Obrigado

    É muito animador…

  3. Braga Borges ( S.C.L.M.) says:

    Xico, parabéns pelo teu site. Sempre foste perfeccionista. Desde a B.D. (Revista Gargalhada), à viola, etc… para não falarmos da elegância do teu hóquei.

    Um abraço.

    b.b.

  4. Velasco says:

    Olá, Braga Borges
    Ainda te lembras da revista Gargalhada!!! Fiz lá umas boas de facto. Espera pelos meus cartoons que pretendo inserir neste Site… se tiver tempo. Grato pelos parabéns.

  5. Braga Borges ( S.C.L.M.) says:

    Cá te espero, Xico.

    Abração.

  6. António (Toninho) Rodrigues says:

    Amigo Chico:

    Parabéns!! Valeu a pena a (longa) espera por este teu legado. Saúdo-te como cronista-mor
    de toda uma geração hoquística – a anterior, a vossa e a que se seguiu. Deixaste quase tudo
    dito e o que porventura omitiste, ficou subentendido: o companheirismo de toda aquela malta –
    tão forte que se estendeu até aos dias de hoje. E o que nos resta agora é tão só uma enorme
    saudade (com uma lágrima ao canto do olho) de um época única e irrepetível. E estes dois
    últimos adjectivos levam-me a uma outra questão: a de saber se será alguma vez possível
    esse teu famoso “carrossel” voltar a circular. É que Velascos, Adriões e Bouçós não aparecem
    todos os dias!!!
    E o teu “site” é em si próprio testemunho disso, para além de ser o prémio que mereces
    pelo teu labor e empenho.
    Bem hajas e um abração do amigo de sempre
    Toninho

  7. Velasco says:

    Amigo Toninho
    Um bocado tardio, como o meu Site, agradeço contudo o teu comovente comentário. Como muitos, foste não só uma testemunha de quase todos os acontecimentos relatados com também fizeste parte do lote de jogadores que tanto contribuíram para elevar o hóquei moçambicano ao patamar que alcançou. Assim, as tuas palavras são preciosas demais para eu próprio poder enquadrar-me.
    Um abraço fraterno

  8. João Guilherme silva says:

    Francisco,
    Em primeiro lugar, parabéns pelo teu site, está espectacular.
    O meu pai, João Silva(ex-colega do Amadeu Bouçós, na Shell-LM) envia-te um grande abraço.
    Pergunto:
    è possivel saber do meu amigo Luis Santos, que foi guarda-redes da Cuf(substituiu o Vitor Domingues) do Parede?
    Aquele abraço,
    João Guilherme

  9. Velasco says:

    Caro João Guilherme
    Obrigado pela apreciação e retribuo o abraço do teu Pai. Espero estar com o Bouçós brevemente e mencionar-lhe-ei este comentário teu. Sobre o Luis Santos, ex GR da CUF, não faço a mínima ideia como chegar até ele. Talvez tenha por aí o contacto do Leonel e possa saber algo e logo to direi. Um abraço

  10. Mário A P Vaz says:

    Obrigado por partilhar este pedaço da nossa história recente que mostra como conseguimos ser excelentes sempre que nos empenhamos e assumimos a diferença. Bem haja.

  11. Velasco says:

    Caro Mário A P Vaz

    Retribuo o bem haja agradecendo o seu comentário. Sem proveitos materiais, faço tudo deixar para a posteridade uma odisseia que afectou, e de que maneira, não só a modalidade em si, mas também um todo que era o Portugal de então. Estive sempre consciente que, podendo, seria um crime não deixar para as futuras gerações, pedaços da história do hóquei em patins, um desporto que galvanizou o país inteiro com as conquistas de numerosos títulos internacionais e Mundiais. Valeu a pena.

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